Novas prisões "humanas" adiadas para final da década
"Ainda hoje recebi a informação de que há 180 reclusos na prisão de Ponta Delgada e 50 a dormir nos corredores."
É assim que Vítor Ilharco, da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso, reage quando lhe é perguntado o que sabe sobre os projetos das novas prisões anunciadas em julho de 2019, Ponta Delgada e Montijo, as quais, de acordo com o na altura comunicado, deveriam "estar prontas no quadro da legislatura seguinte" - ou seja, até 2023. E comenta: "Como nunca acreditei que isso fosse para a frente nunca me interessei."
Para a frente vai, assegura o secretário de Estado Adjunto e da Justiça Mário Morgado, que tem a tutela do sistema prisional. "Está agora no caso de Ponta Delgada a ser removida a bagacina [pedra vulcânica] para preparar o terreno e a decorrer o concurso para o projeto de arquitetura da nova penitenciária." Quanto à sobrelotação da atual , com capacidade para 141 reclusos, confirma: no dia em que falou com o DN, quinta-feira 20 de maio, estavam lá 179, ou seja mais 38. "Mas os reclusos em excesso não estão em corredores; estão num espaço amplo e arejado no último andar, frequentemente usado como camarata e que tem 46 homens. Nos próximos dias vão ser tomadas medidas para aliviar a pressão. Está previsto um voo para retirar de lá 25."
Admitindo que o projeto do novo EP, para 400 reclusos, e que será o primeiro dos dois anunciados a arrancar, "está atrasado", pelo que responsabiliza a pandemia, o governante informa que se estima estar pronto em 2027, ou seja no final da próxima legislatura. E do término do período fixado na Estratégia Plurianual de Requalificação e Modernização do Sistema de Execução de Penas e Medidas Tutelares Educativas, que foi apresentada em 2017 para uma década, anunciando o fecho faseado de oito penitenciárias e a construção de cinco novas - a de Ponta Delgada e do Montijo, já mencionadas, e ainda outras três no Minho, Aveiro e Algarve - concebidas a partir de um desenho "ambicioso, moderno e humanizado, (...) que promova uma intervenção reabilitadora."
Mas 2027 poderá ser até uma data otimista para a conclusão do primeiro estabelecimento prisional desta nova geração: é que a adjudicação do projeto de arquitetura está prevista para o final deste ano, prevendo-se depois 450 dias para a sua execução - o que significa que só se conta ter o dito em meados de 2023. Seguindo-se o concurso para a empreitada, o qual de acordo com especialistas consultados pelo DN nunca deverá concluir-se em menos de meio ano, e isto na melhor das hipóteses. Restando assim três anos para a construção da estrutura. Só então esta, que terá capacidade para 400 reclusos e está orçada em 50 milhões de euros, poderá substituir a atual.
Para Jorge Mealha, o arquiteto que com o paisagista Jorge Cancela, ambos da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, dirigiu o desenho do programa base da nova geração de prisões, Ponta Delgada é definitivamente o projeto mais urgente - "Aquilo que lá está parecem masmorras" -, mesmo se a prisão do Montijo, que terá capacidade para 800 presos, "é mais importante". Esta, que visa substituir o Estabelecimento Prisional de Lisboa, que data do século XIX e cujas condições têm sido descritas como atrozes ("Há celas no EPL que deviam ser individuais e têm dois ou três reclusos; para um estar de pé os outros dois têm de estar deitados", diz ao DN Vítor Ilharco), tinha sido aliás anunciada pela Direção dos Serviços Prisionais, em 2019, como a primeira a construir.
Mas Mealha confessa ao DN que não foi sequer informado do lançamento do procedimento concursal para a prisão açoriana. "Não nos disseram nada. Era suposto sermos - a Faculdade - parte integrante da equipa que selecionaria os arquitetos e engenheiros que vão desenhar os projetos específicos." Parece, conclui, "que fomos postos de lado."
Certo é que ainda na fase de apresentação pública do projeto base das novas prisões, na qual Mealha deu algumas entrevistas explicando as ideias que subjazem ao projeto - desde logo, que a privação de liberdade deve ser a única punição ali - e usando termos como "quartos" em vez de "celas", o diretor-geral dos Serviços Prisionais, Rómulo Mateus, tinha, em declarações ao Expresso, lançado críticas à equipa da Universidade de Lisboa: "Os arquitetos tomaram algumas liberdades artísticas e não é isso que foi pedido pela direção-geral. Nem tudo o que está no projeto será concretizado. (...) Uma prisão não é um hotel."
Tendo sido alterada a ordem pela qual era suposto as duas prisões serem construídas, o DN não conseguiu saber se também há modificações no projeto base, que previa, de acordo com as "Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos" (mais especificamente a nº 12: "Não é recomendável que duas pessoas sejam alojadas na mesma cela ou quarto"), que todas as celas fossem individuais, em oposição às camaratas, por vezes com muitos presos, que são a atual norma num sistema prisional maioritariamente construído na primeira metade do século XX. O que se apurou é que as empresas que estão a participar no concurso ainda nem receberam o dito projeto; o procedimento concursal de arquitetura está no início, na fase em que as firmas demonstram interesse e capacidade para concorrer, o que implica atestar que têm a "certificação secreto", ou seja, que o Gabinete Nacional de Segurança as autoriza a trabalhar em projetos de alta segurança como prisões.
Para isso, explica ao DN o responsável por aquela que é comummente considerada a maior empresa de arquitetura nacional, Miguel Saraiva, e que foi encarregada do desenho das novas instalações da Polícia Judiciária, é necessário que as firmas demonstrem ter espaços alocados para projetos de alta segurança - áreas nas quais só entra pessoal autorizado e através de código - e capacidade para manter estanques os circuitos digitais em que aqueles são desenvolvidos. É só depois do atestar dessa certificação que são convidadas as empresas escolhidas para participar no concurso, para que, perante o caderno de encargos, apresentem o seu preço. A seguir, com a adjudicação do projeto à empresa que vence o concurso, vem a terceira fase, o desenvolvimento do projeto de execução para obra.
Confrontado com as previsões adiantadas pelo diretor geral dos Serviços Prisionais em 2019 para a construção das duas novas prisões no espaço de uma legislatura - quatro anos -, este especialista consultado pelo DN espanta-se: "Perante aquilo que são as normas destes concursos, morosos por causa de todos os requisitos legais, podendo sempre existir problemas como reclamações e impugnações, parece-me que esse era um prazo pouco realista."
Um dos motivos para o atraso terá sido a assinatura das Finanças na portaria "de extensão de encargos" sem a qual não pode avançar o concurso. Aliás, o procedimento concursal para o novo EP do Montijo ainda não arrancou devido à falta da preciosa assinatura. Mesmo se desde 2019 que o montante necessário para a construção das duas primeiras prisões está, de acordo com o que foi dito ao DN pelo à época diretor do Instituto de Gestão e Financeiro do ministério da Justiça, Joaquim Carlos Rodrigues (entretanto substituído por Rosa Sá), assegurado: "É necessário o OK do ministério das Finanças, mas o financiamento vem de receitas próprias do instituto, correspondentes a emolumentos e taxas de justiça." Nos anos seguintes, disse na mesma entrevista, era suposto serem identificados "terrenos para avançar para a construção dos outros EP."
Mas veio a pandemia, e como sempre os reclusos e as prisões não estiveram nas prioridades - nem sequer para a vacinação. Ainda recentemente, a meio de maio, a APAR denunciou o facto de a generalidade dos presos, que neste momento serão, de acordo com Mário Morgado, 13700 - o que implica uma taxa de ocupação de 91,5% - , não terem sido ainda vacinados. Porquê, o secretário de Estado não sabe explicar: as prioridades na vacinação não são seu departamento mas do ministério da Saúde. Mas assegura que entre 31 de janeiro e 14 de maio foram vacinadas 8728 pessoas do universo prisional, entre guardas, funcionários da Direção Geral e reclusos dos grupos de risco. A partir de 31 de maio, garante, começará a vacinação dos "reclusos que faltam". Que, de acordo com Vítor Ilharco, são quase todos: "Vacinaram os guardas mas os reclusos não, à exceção dos inimputáveis. Porque os presos não são pessoas, é sempre essa a ideia. Estão com visitas de meia hora por semana com acrílico a separar. E há um ano e meio sem possibilidade de dar um beijo a um familiar."
É um facto a indiferença da generalidade das pessoas face às condições de vida dos reclusos e o pouco que, também por esse motivo, se sabe delas. Mesmo a mencionada estratégia de 2017, se declara que a maioria dos 49 EP existentes são "deficientes", "carecendo de espaços de ocupação de reclusos e salas de aula" e ainda da "reabilitação da cozinha, lavandaria e central térmica", não dá informação sobre factos básicos. A saber: se existe separação de condenados e preventivos; quantas pessoas em média são encerradas nas camaratas, que dimensão e características estas têm; qual o número de horas que os reclusos são obrigados a permanecer na cela e o que podem fazer durante o dia; qual a dimensão e natureza dos espaços de convívio; que atividades podem os presos desempenhar.
Jorge Mealha, que com Jorge Cancela visitou o sistema prisional antes da elaboração do projeto base para a nova geração de estabelecimentos, ficou impressionado com o que viu. "Foi percetível a dureza da vida na prisão. Vimos algumas em que havia umas oito pessoas por compartimento, nuns 20 ou 30 metros quadrados, em beliches. E a impressão com que fiquei no fim dessas visitas é que os portugueses há 50 anos ignoram as prisões. É como se aquilo não existisse. Há uma total falta de investimento no sistema prisional. E depois esperamos que por milagre haja uma redenção."
Já houve no entanto pelo menos outro plano ambicioso para a renovação do sistema - que como o de 2017 encontrou uma crise pela frente. Em 2006 foi anunciado pelo então governo que iriam ser, até 2010 (mais uma vez, num horizonte temporal de menos de quatro anos) fechadas 22 das 56 penitenciárias então existentes, incluindo o EPL, Coimbra e Pinheiro da Cruz, e construídas quatro novas. Foi aliás nessa altura que o EPL foi vendido à Parpública por 60 milhões de euros, para com eles financiar a construção de duas novas cadeias, em Alcoentre e Linhó - "mais modernas, funcionais e humanas", como as caracterizou o então secretário de Estado Conde Rodrigues, e cujo início de construção estava aprazado para 2007.
Com capacidade prevista para 1200 presos, as duas deveriam estar prontas em 2009, altura em que o EPL seria encerrado. Na mesma altura, decorria o concurso para a nova cadeia de Angra do Heroísmo, nos Açores, cuja construção, orçada em 25 milhões de euros, se iniciou apenas em 2010 e que seria a única do plano a avançar - em 2011 o governo de Passos deixaria cair o resto. Inaugurada em 2013, a nova prisão, com capacidade para 370 reclusos e que tem ala feminina e masculina, tem sido utilizada sobretudo para preventivos e foi em 2019 qualificada pela ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, como "provavelmente do melhor que temos do ponto de vista da qualidade das instalações."
Se a construção do novo estabelecimento prisional de Ponta Delgada se iniciar em 2024, terão decorrido 14 anos desde o lançamento da primeira pedra da última prisão construída de raiz. Muito tempo, decerto, para quem vive nas penitenciárias portuguesas em condições que têm muitas vezes sido descritas como miseráveis.
"Como sociedade nunca estaremos de acordo sobre onde gastar o dinheiro", comenta Jorge Mealha. "Mas considero que as prisões fazem parte do mesmo sistema que os hospitais e as escolas. São uma síntese dos outros dois, e são necessárias porque os outros falharam." Sendo que, crê, "o que levou os países a começar a mudar as coisas nas prisões foi do lado da economia, porque é caríssimo ter uma pessoa presa. Não foi só por causa dos princípios. Pensaram: se mudarmos o paradigma as coisas podem correr melhor, pode haver menos reincidência."
Qual a taxa de reincidência dos reclusos portugueses é algo que se desconhece - a única estimativa data de 2003, de um relatório da Provedoria de Justiça, que apontava para 51%. Um dos países com uma taxa mais baixa - 20% - é a Noruega, cujas prisões são maioritariamente abertas, com os reclusos a trabalhar fora, controlados por via eletrónica, e no seu desenho e conforto parecem boas residências de estudantes.
"Se tratarmos as pessoas como animais, o mais certo é portarem-se como animais, escreveu em 2013 no jornal britânico Guardian o psicólogo Arne Wilson. "O que está na lei não é que ser condenado a uma pena efetiva significa ir para uma prisão horrível que nos faça sofrer. O castigo é a perda da liberdade. Temos de pensar se queremos usar a prisão como primeiro ou último recurso e o que queremos conseguir com os sistemas de penas. Algumas pessoas têm de ser presas, mas o objetivo deve ser colocá-las de volta na sociedade em melhor estado do que quando entraram na prisão."