Quem tem medo da geringonça II?

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Os acordos que sustentam a actual maioria parlamentar vão ficar para história da democracia portuguesa por três motivos: o primeiro é um facto; o segundo, uma probabilidade; o terceiro, uma incógnita.

O facto é o carácter inédito da solução encontrada em 2015. Desde 1976, por várias ocasiões houve uma maioria de deputados de (centro) esquerda no Parlamento sem que o executivo resultante pudesse contar com esses votos para governar. Até aqui Portugal era um caso raro na Europa ocidental, onde mais de uma dúzia de países já tinham sido governados com o apoio ou mesmo a participação de partidos à esquerda do centro. A geringonça pôs fim a essa excepção lusa, criando um precedente que transforma necessariamente o quadro político português.

Provavelmente, a geringonça também ficará para a história por conseguir completar uma legislatura. Poucos eram os que acreditavam à partida nessa possibilidade. Por desejo irracional, por erro de cálculo ou por azar, muitos vaticinaram vida curta à inédita maioria de esquerda. Se ainda restavam dúvidas quanto à aprovação do Orçamento do Estado para 2019, o último debate do Estado da Nação mostrou que a vontade de levar a legislatura até ao fim é mais forte do que qualquer impulso de ruptura no seio dos partidos da maioria.

Por fim, a geringonça poderá ficar nos manuais de ciência política pela sequência que lhe for dada depois das próximas eleições, qualquer que ela seja. Aqui colocam-se três cenários alternativos: ou há um novo governo apoiado pelo PS e por partidos à sua esquerda, reforçando o impacto estrutural da actual experiência na democracia portuguesa; ou o PS vence com maioria absoluta, destruindo o mito de que os socialistas só governam quando se posicionam ao centro; ou, finalmente, o PS fica em minoria e não se entende com os partidos à sua esquerda, pondo fim a uma solução que conta com um forte apoio popular.

Este é um dado que a maioria dos actores políticos em Portugal prefere ignorar, mas que é incontornável: a actual maioria parlamentar vai ao encontro das preferências de uma grande parte dos eleitores. Por uma razão ou por outra, uma larga parcela de portugueses revê-se numa solução em que o PS governa mas é obrigado a articular-se com as forças à sua esquerda. Só assim se explica a persistência do bom desempenho nas sondagens de PS, BE e CDU.

Paradoxalmente, o que parece agradar à maioria dos portugueses não agrada nem às elites económicas, nem aos comentadores mais mediáticos, nem às direcções dos partidos - sejam eles de direita ou de esquerda.

Por interesse próprio ou por convicção ideológica, os grandes interesses empresariais, os observadores de direita e os partidos que os representam lidam mal com uma solução de governo onde existe uma pressão permanente pela defesa de direitos sociais e laborais, e por uma melhor distribuição dos rendimentos e da riqueza.

Mas não é só a direita que vive desconfortável com a ideia de uma geringonça II. Há vários sectores do PS que não lidam bem com os constrangimentos que as negociações à esquerda impõem, nem com a perspectiva de perpetuação da dependência face à esquerda para governar. Por sua vez, o Bloco de Esquerda vive pressionado entre, por um lado, a cultura antipoder predominante no seio da militância e da direcção e, por outro lado, a maioria do seu eleitorado que espera do BE uma maior predisposição para o compromisso. Para o PCP, prolongar o apoio a um governo que se impõe a si próprio o cumprimento das regras orçamentais europeias enfraquece um dos eixos fundamentais da sua identidade política contemporânea: a convicção sobre a impossibilidade de desenvolver Portugal sob o espartilho da UE.

Grande parte dos protagonistas políticos e dos interesses económicos do país parece assim convergir no desejo da não repetição da geringonça, esperando que o PS vença com maioria absoluta ou que procure apoio à direita para governar em minoria. Não estranhemos, assim, que muitos discursos e comentários políticos, vindos de todos os quadrantes, traduzam esse desejo de forma mais ou menos assumida.

No entanto, é imprudente apostar todas as fichas nesse desfecho. Os partidos não são nem devem ser insensíveis às preferências dos seus eleitores. Se o PS ficasse em minoria após as próximas eleições e não houvesse uma solução de governação à esquerda, os partidos da actual maioria teriam de justificar muito bem tal opção a quem neles votou. Talvez nessa altura seja mais fácil fazê-lo. No momento presente não é nada claro qual o sentido de pôr fim à experiência da geringonça, por muitas que sejam as suas limitações e por muito que todos se empenhem em sublinhar publicamente as divergências.

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