Ver África pelos olhos de um africano

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Como é que se chama a atenção para um escritor de Zanzibar? Relembra-se com certa erudição que vem de uma ilha do Índico que foi pela primeira vez visitada por um europeu quando Vasco da Gama lá pôs os pés em 1498 e fez durante 200 anos parte do Império Português? Ou, numa versão mais pop, diz-se que é da terra onde nasceu também Farrokh Bulsara, mais tarde celebrizado como Freddie Mercury? Nenhuma das opções, na verdade, pelo menos quando comparada com o impacto que ganhar o Nobel da Literatura tem na carreira de um zanzibarita ou de qualquer escritor. Marketing mais eficaz é difícil, e ninguém melhor para o testemunhar do que Abdulrazak Gurnah, o vencedor de 2021 e que agora vê publicado em português Vidas Seguintes, o primeiro livro seu editado por cá (Cavalo de Ferro), apesar de ter 73 anos e de ser romancista há três décadas.

E não, a língua em que escreve Gurnah não explica o tardar em chegar até nós (e não só), pois se o suaíli é o idioma materno, aquele em que escreve é o inglês, da sua pátria adotiva. Inglês em que por vezes se misturam palavras suaílis, árabes e até alemãs, como no livro que acabei de ler, e que se passa na costa oriental africana, no período colonial alemão e já depois da Primeira Guerra Mundial, durante o Protetorado Britânico. Já vi resumido por aí que é um livro sobre a violência dos militares alemães e das suas tropas africanas, os askaris, que não é designação de uma etnia, mas sim a palavra para soldado em suaíli. Não resumo assim, mas sim como um livro em que se traça o retrato de uma sociedade cheia de contradições, contradições nos colonos alemães, nos negociantes com raízes na Índia, nas populações arabizadas do litoral, nas tribos que viviam no interior. Há quem se esforce por aprender alemão, também por denunciar uma escravatura que existia muito antes da chegada dos europeus, outros por advogar uma forma de islão tolerante, outros por isto e aquilo, pois o mérito de Gurnah é transportar-nos para outra época, outra terra, e dar-nos uma visão íntima delas. É que ele é de lá, mesmo que também seja de cá.

Zanzibar até 1964 era dominada pela elite árabe. As populações ditas africanas, e aqui entra-se no domínio do subjetivo, revoltaram-se e a ilha hoje faz parte da Tanzânia, tal como o antigo Tanganica, que também foi África Oriental Alemã. A família de Gurnah fazia parte dessa elite e por isso ele teve de fugir. Foi como refugiado que chegou a Inglaterra e construiu uma carreira de académico. Entretanto, já visitou de novo o país onde nasceu, que não deixa de considerar seu. Mas sobretudo através da sua escrita - e de entrevistas como a que deu há dias a Ana Daniela Soares na RTP e que recomendo ver - o filho de Zanzibar oferece-nos o olhar do outro, algo que tanta falta nos faz quando tentamos perceber como vai o mundo. Que para os portugueses, ou outros, precisem para isso que o Comité Nobel atribua um prémio é triste, dirão os críticos de sempre. Eu por mim agradeço que me apresentem o nome Abdulrazak Gurnah.

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