Os Aristogatos: há 50 anos pelos telhados de Paris

Em véspera de Natal, estreava-se há 50 anos a última animação Disney aprovada pelo próprio fundador dos estúdios, Walt Disney.<em> Os Aristogatos</em>, eternizado pelo tema musical <em>Everybody Wants to Be a Cat</em>, recorda-nos que também os felinos têm distinção social: uns são felizes confinados, outros são vadios mas livres.
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Há um ano, mais coisa, menos coisa, a notícia de que a gata do designer de moda Karl Lagerfeld seria uma das herdeiras da sua fortuna tornou-se um daqueles fait divers excêntricos que, por momentos, fazem suspirar qualquer ser humano de posses modestas. O que tem Choupette de tão especial? A pergunta pode fazer-se a todos os amantes de gatos, mas tem particular cabimento se colocada à dona de Duquesa, Marie, Berlioz e Toulouse, mais precisamente, a Madame Adelaide Bonfamille da animação Os Aristogatos que, muito antes do diretor criativo da Chanel, já tinha lançado a moda de deixar heranças a felpudos. Pelos vistos, uma extravagância muito francesa (Lagerfeld era alemão mas viveu e morreu em Paris).

É então esta a história no centro daquele que terá sido o último projeto aprovado pela pena de Walt Disney: uma cantora de ópera aposentada que, ao tratar do testamento com o seu advogado, decide acautelar um destino nobre para a sua gata e respetivas crias, contando com a fidelidade de um mordomo inglês que deveria cuidar dos animais até à morte destes, e só depois herdar ele próprio a fortuna deixada aos felinos. Edgar, o mordomo, que escuta os planos da sua senhora, não está para esperar tanto tempo pela riqueza prometida (talvez morra antes dos gatos!) e arranja maneira de fazer desaparecer da vista os "tesouros" de quatro patas... Mas para uma Duquesa há sempre um herói como Thomas O'Malley, vadio e charmoso, por isso, ao vilão de meia-tigela sai-lhe o tiro pela culatra. Que é como quem diz, a gataria encontrará o caminho de volta para casa.

Lançado a 24 de dezembro de 1970, Os Aristogatos fez da Paris de 1910 a cidade romântica correspondente ao simbolismo que Londres tem para Os 101 Dálmatas (1961) - a testemunhar essa cumplicidade entre os dois filmes, na versão live action do último há mesmo uma cena com os pequenos dálmatas a verem Os Aristogatos na televisão. Mas o grande esmero, não só de Walt Disney como do realizador Wolfgang Reitherman, foi o denominador comum dos animais.

Ao longo da construção do seu império animado, Disney ficou conhecido por uma particular sensibilidade no que toca à caracterização dos animais. E uma das suas máximas - "Quando criamos fantasias não podemos perder de vista a realidade" - denota essa preocupação de alcançar o ponto ideal entre o imaginário e o real. Daí que também no elenco de vozes de Os Aristogatos se tenha procurado a rigorosa identificação das personagens com a personalidade dos atores. O próprio Disney (antes da morte em 1966) foi o responsável pela escolha do comediante Phil Harris para a voz do gato de rua O'Malley, sendo Duquesa uma nomeação de Reitherman, que reconheceu na voz de Eva Gabor a frescura feminina adequada a uma gata de postura "aristocrática".

O caso mais exemplar desta lógica de casting seria ainda o de Louis Armstrong, que tinha uma personagem escrita à sua imagem e semelhança: Satchmo, o rechonchudo gato trompetista. Infelizmente, o músico de jazz já estava doente na altura e acabou por ser substituído por Scatman Crothers, contratado sob a condição de tentar reproduzir o melhor possível o aparelho vocal de Armstrong, mudando-se também o nome da personagem para Scat.

A ilustríssima personalidade definitivamente ligada ao projeto terá sido, porém, Maurice Chevalier, o cantor e humorista que saiu da reforma aos 82 anos só para interpretar, em inglês e francês, o tema musical homónimo do filme, escrito e composto pela dupla das canções de Mary Poppins, os oscarizados Richard e Robert Sherman. Seria o derradeiro trabalho de Chevalier, a que não faltou uma típica airosidade parisiense, naturellement!

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Mas a música que popularizou Os Aristogatos foi, sem dúvida, Everybody Wants to Be a Cat, um postulado sinfónico cuja letra tem hoje especial aplicação prática: será que queremos mesmo ser gatos em tempos de pandemia? Depende. Há os gatos de rua como O'Malley e Scat, que apreciam a vida ao ar livre, sem regras (nem máscaras), e aqueles que, como Duquesa e os filhotes, desfrutam do confinamento no conforto do lar, sem grandes viagens para lá da janela com vista sobre os telhados de Paris.

Gatos como nós, ou nem por isso, que não temos fortuna deixada por uma Madame Adelaide Bonfamille. A verdade é que em 2020 nos aproximámos de uma certa compreensão da chamada vida de gato. Falta só aquela serenidade com que eles viram os bigodes às apoquentações e dormem refastelados.

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