Mia Couto: "O apoio moral não é fundamental, preciso mesmo é o material"

O escritor moçambicano Mia Couto define como um "absurdo" a destruição da cidade e da região da Beira, em Moçambique. Ao telefone nota-se que a voz está emocionada e tem dificuldade em concentrar-se nas respostas.
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Mia Couto nasceu na Beira, a cidade devastada há dias pelo ciclone Idaique matou e deixou desaparecidas centenas de pessoas, bem como milhares de desalojados. O escritor moçambicano era para se deslocar a esta cidade exatamente quando se deu a passagem da tempestade, onde ia realizar investigação para o livro que está a escrever. Ao telefone, nota-se que está tenso tantas são as tarefas que estão a cair na Fundação Fernando Leite Couto, com o nome do pai, uma entidade que quem está solidário com as vítimas escolhe e confia para as ajudar.

O escritor lançou um apelo à solidariedade para com as vítimas no site da fundação (http://www.fflc.org.mz/), sob o apelo "Moçambique precisa urgentemente da solidariedade de todos", e durante a entrevista ao DN pede ajuda à divulgação da iniciativa para ajudar os desalojados na cidade da Beira e na região central de Moçambique.

O autor moçambicano Mia Couto fala durante quinze minutos, durante os quais define como um "absurdo" a destruição da cidade e da região da Beira. Que caracteriza assim: "Parece um plano organizado para acabar de vez com aquela região", enquanto considera que, em face da urgência da situação, "o apoio moral não é fundamental, preciso mesmo é o apoio material."

Marcado pessoalmente com os acontecimentos e a tragédia que cerca a cidade onde nasceu e que é protagonista de vários dos seus livros, Mia Couto revela que releu entretanto um dos primeiros contos que publicou, De como o Velho Jossias Foi Salvo das Água s, e confrontou-se com uma narrativa que "parece uma antecipação desta realidade". Confessa que após a releitura desse conto não consegue "ter força para escrever ou transformar em ficção o que está acontecer agora".

Tal como após 11 de setembro de 2001, quando vários escritores norte-americanos se recusaram a escrever sobre os atentados, pergunta-se se irá evocar esta tragédia natural em algum livro futuro. Mia Couto recorda o conto referido e garante que será muito difícil "transformar em ficção isto que está acontecer agora". Diz que o livro que está a escrever é sobre a Beira: "É um livro que eu pensava ser sobre a minha infância, mas o meu editor, Zeferino Coelho, já leu partes e alertou-me de que era verdadeiramente sobre a Beira: 'Você não está a perceber que a grande personagem desse seu novo romance é a sua cidade, a Beira?' É curioso como estas situações coincidem, porque eu tinha uma viagem marcada exatamente para aqueles dias para me deixar tomar pelo espírito da cidade. É evidente que isso não aconteceu e agora não irá acontecer, os meus amigos não querem que eu vá lá."

Acredita no que está a acontecer à sua volta?
Tenho dificuldade em conceber isto fora da ordem do absurdo e do irreal porque a dimensão desta tragédia ultrapassa tudo o que seria possível prever. Este país já teve vários ciclones, mas nunca aconteceu que se somassem tantas adversidades num mesmo momento.

Uma das justificações dadas são as alterações climáticas. É uma explicação?
Acho que pode ser verdade, mas o mais importante é encontrar razões mais próximas e passíveis de intervenção. É preciso planificar melhor, estar mais atento àquilo que a história nos ensinou, porque aquela região é muito vulnerável. No canal de Moçambique acontecem sempre três ciclones por ano, não quer dizer que atinjam a costa moçambicana, mas esta é das mais vulneráveis do mundo. Então, não podemos aceitar que isto nos vá surpreender uma outra vez. É preciso gerir rios, mares e ventos e anteciparmo-nos a estas coisas. Para este caso não podia funcionar, mas não podemos estar a inventar culpas agora.

Na sua opinião não existem culpados?
Acho que não é o momento para pensar sobre isso. Tudo podia ter sido feito de uma outra maneira, mas desde logo é preciso pensar que aquela cidade foi edificada onde não deveria acontecer uma construção urbana. Está erguida em cima de um pântano e abaixo do nível da água do mar, portanto para encontrar culpados temos de ir muito para trás. Também se tem de pôr em causa questões imediatas da governação.

A resposta das autoridades está em conformidade?
Não é possível pedir a um governo e a um país com esta dimensão económica e com esta fragilidade institucional que possam responder a uma tragédia que já foi classificada como uma das mais graves calamidades climáticas que atingiram o hemisfério sul. Nenhum destes países ou governos à volta poderia sozinho dar conta desta resposta.

E a ajuda internacional está a acontecer?
Já há alguma resposta, o problema - e isto revela as fragilidades de que falo - é como se de repente todas as doenças que estavam mais ou menos ocultas viessem ao de cima. Uma dessas fragilidades é haver apenas uma estrada que liga o norte e o sul e o oeste ao este, uma estrada que foi cortada pelo ciclone em quatro partes, e a ajuda que podia acontecer por terra não pode chegar lá assim. Quanto à ajuda aérea, não temos, nem existem meios para isso. A ajuda que vem por mar é dificultada pelo próprio ciclone, pois até agora impedia que os barcos se aproximassem do porto. Enfim, é um conjunto de circunstâncias que adiaram a intervenção exterior.

Está em Maputo, como olham as pessoas da capital para o que se passa na Beira?
Sabem e estão muito solidárias. Toda a gente quer fazer coisas, toda a gente quer ajudar. Não imagina a quantidade de jovens, associações e instituições que se estão a mobilizar para ajudar na resposta. O problema é como é que se faz. Como é que se manda para lá? Há um barco de solidariedade que está a ser carregado, mas para organizar uma operação logística destas confrontamo-nos com o facto de estarmos perante um fenómeno que tem uma escala que não é compatível com as soluções de voluntariado. É preciso uma intervenção do governo, das Nações Unidas, porque os donativos e as ajudas humanitárias que surgem localmente podem dar algum contributo mas não resolvem.

Essa ajuda chegará a tempo?
Acho que em alguns casos não vai a tempo, até porque a situação é a mesma depois de passar o ciclone. Acontece que nunca parou de chover! Há chuvas tão intensas no Zimbabwe, onde choveu num dia só o habitual num ano. Agora, para somar a todas as desgraças, as barragens tiveram de abrir as comportas ou corriam o risco de colapsar. Portanto, há as cheias conhecidas e está a formar-se uma nova onda - por isso digo que ronda o domínio do absurdo. Quando pensamos que já chegou ao fim, acontece qualquer outra coisa. Quando se pensava que o ciclone ia dissipar-se, ele voltou a entrar pela mesma rota e a passar pelos mesmos sítios onde já só existia destruição. Parece um plano organizado para acabar de vez com aquela região.

Alguma vez conseguiria imaginar um argumento destes para um livro?
Não, e por isso não tenho maneira de arrumar esta tristeza em mim. O que estou a fazer é dedicar-me a ações que faço porque tenho de as fazer e por serem o meu dever cívico. Mas também porque não posso estar parado em cima deste sentimento que tenho.

O que está a fazer é através da fundação?
É principalmente pela fundação. Estamos a lançar um apelo porque a grande questão é que as pessoas pedem credibilidade e idoneidade aos agentes que estão a intervir no terreno. Já não acreditam muito que as coisas cheguem ao destino, e essa é uma das razões que provocam um grande peso sobre nós. Pedem à fundação para intervir, têm a crença de que vai comportar-se da maneira desejada. O problema é que não temos estrutura para intervir no terreno, tendo de recorrer à Cruz Vermelha de Moçambique, que trabalha conjuntamente com a Cruz Vermelha Internacional, sendo certo que confiamos em que há mecanismos que garantem a prestação de contas e de como estão a aplicar estas doações.

Os bens acabarão por chegar aos que necessitam?
​​​​​​​Acredito que sim no geral e, mesmo que alguma parte possa ser desviada, acho que é preciso dar ou seremos vencidos.

Há países que têm mais obrigação de ajudar?
​​​​​​​Fiquei surpreendido pela negativa, por exemplo, com o Brasil, que demorou tempo a enviar uma mensagem a um país irmão. Da parte de Portugal, vi uma resposta e uma disponibilidade imediatas.

Além do apoio material é fundamental haver um grande apoio moral?
O apoio moral não é fundamental, o que é preciso é o apoio material.

A Beira vai voltar a ser como era ou esta vaga de destruição alterará até a nível paisagístico a região?
Absolutamente. Vai alterar tudo e a Beira nunca mais será o que já foi. Por um lado, isso é particularmente triste porque eu perdi uma parte de mim, e é como se de alguma maneira estivesse órfão. Foi a cidade que me ensinou a ser quem fui e sou, a ser escritor. É uma cidade que vive em mim como uma história. Por outro lado, a Beira deve renascer de uma outra maneira, tem de ser repensada, porque vive em cima de um risco iminente.

Aquela Beira dos seus livros e que ficou registada para a história nunca mais existirá?
De uma certa maneira sim, mas os lugares são em muito feitos pelas pessoas. Quem está por lá serão os mesmos. As histórias que me chegam de lá mostram como é que as pessoas estão a teimar, insistindo. Há muita gente que poderia ter saído e até agora não o fizeram, como que um apego às suas coisas e à sua terra os obrigasse a ficar. Bem como uma certa dignidade de sermos uma outra coisa aqui, dentro do espaço moçambicano. Isso acho que vai ficar.

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