As cinco vidas de Calouste Gulbenkian

O milionário de origem arménia morreu há 65 anos. Quem era este homem que se mudou para Lisboa e criou a fundação com o seu nome? <em>(Texto publicado orginalmente no dia 23 de março de 2019)</em>
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Era um homem prático e pouco dado a sentimentalismos. Negociante astuto e implacável , solitário, "habituado a ser visto com antipatia". E foi assim que se tornou multimilionário. Mas era também um viajante, amante da natureza, filantropo, apaixonado por arte. E foi assim que se tornou o Calouste Gulbenkian que, hoje, 150 anos depois do seu nascimento, continuamos a celebrar: o homem que morreu mas no seu testamento determinou que em Lisboa se criasse uma fundação com o seu nome e que tivesse "como propósito fundamental melhorar a qualidade de vida das pessoas através da arte, da beneficência, da ciência e da educação". A Fundação Calouste Gulbenkian está em Portugal mas trabalha para o mundo, porque esse era também um dos propósitos do seu fundador, arménio que viajou pelo planeta e sentiu-se em casa em muitos sítios diferentes. A sua última casa foi o Hotel Aviz, em Lisboa, para onde se mudou em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial. E foi também aí que morreu, a 20 de julho de 1955, aos 86 anos.

O miúdo de Scutari

Calouste nasceu numa família da elite arménia em Scutari, Constantinopla, no Império Otomano (atualmente Uskudar, Istambul, na Turquia), no ano em que se abriu o canal de Suez, 1869. O pai, Sarkis Gulbenkian, foi governador de Trebizona, no mar Negro, e começou aí a fortuna familiar. A casa da família e a primeira escola de Calouste ficavam no lado asiático da cidade, os escritórios e negócios da família estavam no lado europeu. Cresceu entre muitas culturas. Os arménios têm a sua própria língua e o seu alfabeto e são predominantemente cristãos. Calouste manteve uma relação distante com o pai mas bastante próxima da mãe - dormiu no quarto dela até aos 14 anos quando foi enviado para casa de um tio em Marselha. Nas palavras do pai: "A mãe mima-o muito e, por isso, ele é nervoso e tímido. Mal diz uma palavra. Na Turquia, era incapaz de dizer olá a uma rapariga; julgo que ele considera isso imoral. Enviámo-lo para a Europa na esperança de lhe mudar o caráter."

De Istambul para o mundo

De Marselha, a família enviou-o em 1884 para Londres, para o King's College, onde estudou Engenharia. No final do curso, o pai oferece-lhe uma viagem de comboio a Baku. A viagem pelo Cáucaso dura cerca de um mês. Ele anda pelos campos petrolíferos e visita o centro refinador, observando as grandes mudanças que aconteciam na exploração de petróleo da região. É um negócio em visível expansão. No regresso, Gulbenkian escreve um livro, que foi publicado em 1891, La Transcaucasie et la Péninsule d'Apchéron; Souvenirs de Voyage, sobre a viagem pela Transcaucásia e conta uma cena em que fica coberto pelo petróleo que jorra do solo. Diz que achou aquela chuva agradável. Mostra-se otimista: "Portanto, tudo corre pelo melhor. O passado é encorajador, o presente soberbo e o futuro deslumbrante."

Deixou de ser um miúdo tímido e passou a ser um jovem determinado. Em junho de 1892, três anos depois de se ter apaixonado à primeira vista, casa-se com Nevarte. Ele tem 23 anos, ela 17. Depois da morte do pai e do massacre de 1896, Calouste muda-se com a família para o Egito. No barco para Alexandria, reencontra um homem que tinha conhecido em Baku, o magnata arménio do petróleo Alexander Mantachev. Gulbenkian, que tinha perdido tudo na fuga, convence Mantachev a abrir escritório em Londres e a nomeá-lo representante das petrolíferas independentes russas. Em 1897 muda-se para Inglaterra. Em 1902 torna-se cidadão britânico.

O senhor 5%

Em Londres, Gulbenkian transforma-se num dos principais intermediários entre os produtores arménios de petróleo e os grupos financeiros internacionais e é nomeado conselheiro financeiro das embaixadas do Império Otomano em Paris e Londres. Esteve na fundação do Banco Nacional da Turquia (em 1908) e da Turkish Petroleum Company (em 1912). É "um facilitador de bastidores", ao mesmo tempo um consultor e intermediário, e um negociador e investidor com participações em várias companhias ligadas à exploração de minério, gás e petróleo espalhadas por todo o mundo. E, naqueles anos politicamente conturbados, é também um diplomata a tentar estabelecer pontes entre o Império Otomano e os países europeus.

A partir dos anos 1930 começa a ser conhecido como o "senhor 5%", por grande parte da fortuna provir dos 5% que conseguiu manter na Turkish Petroleum Company. A sua fortuna cresce de forma desmedida, o que lhe permite, apesar de alguns beliscões, viver um pouco à margem dos conflitos europeus - incluindo duas guerras mundiais.

Vive em Inglaterra até 1914, depois na França. Durante a Segunda Guerra Mundial, a nacionalidade britânica é-lhe retirada porque fica a viver em França, sob o regime de Vichy, aliado da Alemanha nazi. Recupera a nacionalidade em 1945. Nessa altura já morava em Lisboa desde 1942, ocupando várias suites do Hotel Aviz.

Colecionador apaixonado

Um dia, aos 14 anos, o pai deu-lhe uma moeda para que ele comprasse o quequisesse; Calouste correu ao bazar e comprou uma moeda antiga; o pai achou uma tolice mas ele ficou contente. Já era um colecionador e não sabia.
O seu interesse pela arte começou muito cedo mas as primeiras aquisições não foram as mais acertadas. No final de 1903 iniciou uma série de lições individuais no Louvre com o curador e colecionador Camille Benoît. Começa então a fazer algumas compras mais informadas, por exemplo, de Anthony Van Dyck, Joshua Reynolds ou Thomas Gainsborough. Também se interessa por tapetes e arte islâmica e começa uma relação muito próxima com o joalheiro René Lalique. Rubens, Fragonard, Rembrandt, Monet, Renoir, Degas, Manet são alguns dos nomes que se hão de juntar à sua coleção. Além disso, compra importantes peças de escultura do Antigo Egito, manuscritos, cerâmicas orientais, medalhas, livros.

Em 1922 adquire o palacete no n.º 51 da Avenue d"léna, em Paris, para lá colocar muitas das obras de arte que fora adquirindo. Recheado de mobiliário riquíssimo, tapeçarias, cerâmicas, pratas, quadros, esculturas e livros preciosos, o palacete assemelha-se a um museu.

Quando a sua coleção de arte começa a ganhar expressão, Calouste inicia conversações com Kenneth Clark, diretor da National Gallery, em Londres, para que esta fique num "Instituto Gulbenkian" a construir junto ao museu. Porém, com a Segunda Guerra Mundial e o facto de Gulbenkian ser considerado inimigo, Londres perdeu o interesse na coleção. Gulbenkian preocupa-se muito com o futuro dos seus "filhos", como chamava aos seus quadros, e chega a considerar outras localizações, como Washington, até que, com intervenção do seu advogado em Portugal, José Azeredo Perdigão, decide-se por Lisboa.

Aquando da sua morte, em 1955, a sua coleção de arte está avaliada em 15 milhões de dólares.

O legado

Calouste Gulbenkian preocupava-se com o futuro não só da sua coleção de arte, que desejava que ficasse reunida num só local e disponível para o público, como também queria que a sua fortuna servisse para manter algumas das obras filantrópicas que iniciara. Em 1953, no seu último testamento, determina a criação de uma fundação com o seu nome em Lisboa. Em 1969 foi inaugurado o edifício-sede da Fundação Calouste Gulbenkian, na Avenida de Berna, em Lisboa. Num país fechado num regime totalitário e com poucos fundos para a cultura, a Fundação Gulbenkian tornou-se o principal financiador de artistas, permitindo-lhes criar e (tão importante também) ter formação e viajar.

Atualmente a fundação conta com um museu, que alberga a coleção particular do fundador e uma coleção de arte moderna e contemporânea; uma orquestra e um coro (e teve durante muitos anos uma companhia de bailado); uma biblioteca de arte e arquivo; um instituto de investigação científica; e um jardim, que é um espaço central da cidade. Além disso, tem vários programas de bolsas e outros financiamentos nas áreas sociais e científicas.

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