No princípio da década de 90, quando a queda de uma parede na Alemanha lançou o mote para passar certificados de óbito a toda e qualquer abstracção, era comum encontrar nas páginas culturais artigos preocupados com o futuro das histórias de espionagem: o que aconteceria, perguntavam estas fukuyamices menores, aos enredos clássicos sobre agentes soviéticos, passaportes forjados, toupeiras, traições e postos de vigia em Berlim, agora que a Guerra Fria terminara? O The New York Times chegou ao ponto de falar com John le Carré, perguntando-lhe essencialmente o que é que tencionava fazer à sua vida. Le Carré foi-se safando, e a história de espionagem também, com um catálogo novo de brinquedos - multinacionais corruptas, traficantes de armas, terroristas islâmicos -, mas já na altura era óbvio que a história de espionagem especificamente ancorada na Guerra Fria também trataria de sobreviver ao fim da Guerra Fria. Não só porque a mitologia que estabelecera era demasiado apelativa, mas porque o intervalo temporal que permite a qualquer fenómeno ser reciclado pela nostalgia é cada vez mais curto..Counterpart, tal como The Americans, é um produto desse impulso nostálgico. (Mas, ao contrário de The Americans, a sua reputação é tão clandestina que a série foi recentemente cancelada ao fim de duas temporadas, e o espectador interessado em vê-la pode precisar de palavras-passe e operações subversivas)..A acção decorre no presente, em Berlim, numa bizantina agência da ONU povoada por um elenco multinacional. J.K. Simmons, que ganhou o Oscar em 2015 por dar chapadas a percussionistas, interpreta o papel de Howard Silk: um plácido tarefeiro de gabinete, mais Smiley do que Bond, com vestuário pardo e vocabulário cinzento, que passou 30 anos de carreira a fazer um trabalho monótono cujo propósito desconhece, e sem nunca conseguir a almejada promoção..No primeiro episódio vemo-lo a entrar num gabinete com um punhado de envelopes lacrados, passando horas a recitar em voz alta frases banais que aparentam ser código ("estamos na época das orquídeas", etc.) a outro funcionário taciturno no lado oposto de um vidro. Ao fim do dia, Howard arruma a pasta e vai para casa, os ombros tão descaídos como os cantos da boca..No outro lado do vidro, no entanto, não estava um colega de escritório, nem a outra metade de Berlim, nem sequer outro país, mas sim um universo paralelo - uma duplicação criada por acidente três décadas antes, quando uma experiência científica correu mal. No ponto de origem, os dois mundos eram réplicas exactas, mas pequenos pontos de divergência foram acumulando e hoje são essencialmente duas realidades diferentes com a mesma geografia - e com duas populações de sósias que partilham ADN, aspecto físico e todas as memórias que antecederam a cisão, mas também com todas as diferenças de temperamento resultantes de anos de escolhas, sortes e azares..As engrenagens narrativas começam a funcionar quando o Howard do segundo mundo entra em cena, revelando a existência de uma conspiração e, mais importante para o primeiro Howard, a existência de uma versão macho alfa da sua pessoa..A premissa podia facilmente ser explorada como ficção científica, mas a execução opta por tratá-la como mero cenário para os tropos habituais da série de espionagem - e um dos méritos do guião é a descontraída paciência com que as divergências entre os dois mundos vão sendo relatadas, sem grandes descargas de narração expositiva. (A dada altura aprendemos que um dos mundos sofreu uma pandemia global de gripe - matando 6% da população e banindo para sempre o consumo de carne de porco). As ficções de espiões raramente conseguem encontrar um ponto de equilíbrio entre frisson e plausibilidade: entre a romantização exaltada da actividade e o revisionismo anémico dessa romantização que, na fórmula estabelecida por Le Carré, condena o agente secreto ao estatuto de funcionário público: atolado no seu pequeno domínio de escrivaninhas, arquivos e corredores crepusculares, a beber vinho de supermercado em vez de martinis, a apanhar o autocarro em vez de guiar um Aston Martin. Counterpart contorna esta dificuldade dividindo o seu protagonista em dois e destacando um para cada extremo, espremendo todas as implicações de literalizar a duplicidade inerente à função de espião. O que acontece à actividade obcecada com agentes duplos, quando os agentes são genuinamente duplos?.A série não é perfeita e acaba por ser vítima da sua própria falta de ansiedade em capitalizar a originalidade da premissa. As exigências dramáticas e a exiguidade espacial fazem o enredo resvalar demasiadas vezes para sequências em que uma personagem entra no gabinete de outra a recordar que problema X ainda não foi resolvido, o que pode causar problema Y..Os seus melhores momentos funcionam por implicação, nos interstícios do que é explicado, e no que somos levados a adivinhar sobre, por exemplo, o colossal e invisível aparelho burocrático criado tanto para regular a anomalia como para extrair microvantagens geopolíticas da sua existência..Num certo sentido, a espionagem é análoga à publicidade: só é necessária porque a concorrência a usa. A Guerra Fria engendrou dois aparatos rivais que depressa degeneraram num culto de puro processo, seguindo determinados procedimentos apenas porque os procedimentos eram duplicados e precisavam de ser seguidos para se cancelarem mutuamente. A premissa de Counterpart leva esta vasta futilidade auto-sustentada às últimas consequências: cada segredo novo é imediatamente vulnerável, porque há alguém no outro lado com a capacidade para o saber sem o descobrir; qualquer ideia nova é automaticamente levada a sério porque há alguém no outro lado capaz de a ter ao mesmo tempo (tornando-a inútil se for concretizada, e perigosa se não for). É uma pena que a série não tenha tido a coragem de descartar metade dos tiroteios, perseguições e espasmos melodramáticos, e de ser tão abnegadamente aborrecida quando o seu tema não enunciado: o terror circular e paralisante da paranóia justificada..Cronista.Escreve de acordo com a antiga ortografia
No princípio da década de 90, quando a queda de uma parede na Alemanha lançou o mote para passar certificados de óbito a toda e qualquer abstracção, era comum encontrar nas páginas culturais artigos preocupados com o futuro das histórias de espionagem: o que aconteceria, perguntavam estas fukuyamices menores, aos enredos clássicos sobre agentes soviéticos, passaportes forjados, toupeiras, traições e postos de vigia em Berlim, agora que a Guerra Fria terminara? O The New York Times chegou ao ponto de falar com John le Carré, perguntando-lhe essencialmente o que é que tencionava fazer à sua vida. Le Carré foi-se safando, e a história de espionagem também, com um catálogo novo de brinquedos - multinacionais corruptas, traficantes de armas, terroristas islâmicos -, mas já na altura era óbvio que a história de espionagem especificamente ancorada na Guerra Fria também trataria de sobreviver ao fim da Guerra Fria. Não só porque a mitologia que estabelecera era demasiado apelativa, mas porque o intervalo temporal que permite a qualquer fenómeno ser reciclado pela nostalgia é cada vez mais curto..Counterpart, tal como The Americans, é um produto desse impulso nostálgico. (Mas, ao contrário de The Americans, a sua reputação é tão clandestina que a série foi recentemente cancelada ao fim de duas temporadas, e o espectador interessado em vê-la pode precisar de palavras-passe e operações subversivas)..A acção decorre no presente, em Berlim, numa bizantina agência da ONU povoada por um elenco multinacional. J.K. Simmons, que ganhou o Oscar em 2015 por dar chapadas a percussionistas, interpreta o papel de Howard Silk: um plácido tarefeiro de gabinete, mais Smiley do que Bond, com vestuário pardo e vocabulário cinzento, que passou 30 anos de carreira a fazer um trabalho monótono cujo propósito desconhece, e sem nunca conseguir a almejada promoção..No primeiro episódio vemo-lo a entrar num gabinete com um punhado de envelopes lacrados, passando horas a recitar em voz alta frases banais que aparentam ser código ("estamos na época das orquídeas", etc.) a outro funcionário taciturno no lado oposto de um vidro. Ao fim do dia, Howard arruma a pasta e vai para casa, os ombros tão descaídos como os cantos da boca..No outro lado do vidro, no entanto, não estava um colega de escritório, nem a outra metade de Berlim, nem sequer outro país, mas sim um universo paralelo - uma duplicação criada por acidente três décadas antes, quando uma experiência científica correu mal. No ponto de origem, os dois mundos eram réplicas exactas, mas pequenos pontos de divergência foram acumulando e hoje são essencialmente duas realidades diferentes com a mesma geografia - e com duas populações de sósias que partilham ADN, aspecto físico e todas as memórias que antecederam a cisão, mas também com todas as diferenças de temperamento resultantes de anos de escolhas, sortes e azares..As engrenagens narrativas começam a funcionar quando o Howard do segundo mundo entra em cena, revelando a existência de uma conspiração e, mais importante para o primeiro Howard, a existência de uma versão macho alfa da sua pessoa..A premissa podia facilmente ser explorada como ficção científica, mas a execução opta por tratá-la como mero cenário para os tropos habituais da série de espionagem - e um dos méritos do guião é a descontraída paciência com que as divergências entre os dois mundos vão sendo relatadas, sem grandes descargas de narração expositiva. (A dada altura aprendemos que um dos mundos sofreu uma pandemia global de gripe - matando 6% da população e banindo para sempre o consumo de carne de porco). As ficções de espiões raramente conseguem encontrar um ponto de equilíbrio entre frisson e plausibilidade: entre a romantização exaltada da actividade e o revisionismo anémico dessa romantização que, na fórmula estabelecida por Le Carré, condena o agente secreto ao estatuto de funcionário público: atolado no seu pequeno domínio de escrivaninhas, arquivos e corredores crepusculares, a beber vinho de supermercado em vez de martinis, a apanhar o autocarro em vez de guiar um Aston Martin. Counterpart contorna esta dificuldade dividindo o seu protagonista em dois e destacando um para cada extremo, espremendo todas as implicações de literalizar a duplicidade inerente à função de espião. O que acontece à actividade obcecada com agentes duplos, quando os agentes são genuinamente duplos?.A série não é perfeita e acaba por ser vítima da sua própria falta de ansiedade em capitalizar a originalidade da premissa. As exigências dramáticas e a exiguidade espacial fazem o enredo resvalar demasiadas vezes para sequências em que uma personagem entra no gabinete de outra a recordar que problema X ainda não foi resolvido, o que pode causar problema Y..Os seus melhores momentos funcionam por implicação, nos interstícios do que é explicado, e no que somos levados a adivinhar sobre, por exemplo, o colossal e invisível aparelho burocrático criado tanto para regular a anomalia como para extrair microvantagens geopolíticas da sua existência..Num certo sentido, a espionagem é análoga à publicidade: só é necessária porque a concorrência a usa. A Guerra Fria engendrou dois aparatos rivais que depressa degeneraram num culto de puro processo, seguindo determinados procedimentos apenas porque os procedimentos eram duplicados e precisavam de ser seguidos para se cancelarem mutuamente. A premissa de Counterpart leva esta vasta futilidade auto-sustentada às últimas consequências: cada segredo novo é imediatamente vulnerável, porque há alguém no outro lado com a capacidade para o saber sem o descobrir; qualquer ideia nova é automaticamente levada a sério porque há alguém no outro lado capaz de a ter ao mesmo tempo (tornando-a inútil se for concretizada, e perigosa se não for). É uma pena que a série não tenha tido a coragem de descartar metade dos tiroteios, perseguições e espasmos melodramáticos, e de ser tão abnegadamente aborrecida quando o seu tema não enunciado: o terror circular e paralisante da paranóia justificada..Cronista.Escreve de acordo com a antiga ortografia