A mulher que ajudou Egas Moniz a ganhar o Nobel
"Puxava o cabelo todo para este lado, fazia-a, puxava-a e prendia-a. Era a coisa mais simples para mim. Fazia-a de manhã e à noite abria-a, estava livre. Só quando ela se desprendia é que se tornava um dia maluco. Casei-me assim, com um chapéu feito de propósito para a trança." Maria de Lourdes Bettencourt vai fazendo os gestos como se os seus cabelos ainda fossem longos e negros, como mostram as fotografias que tem pousadas numa das mesas do apartamento que ocupa numa residencial para idosos de Lisboa.
Pega numa delas e descreve: "Aqui está o cônsul da Suécia e a mulher; esta é a mulher do Egas Moniz e o Egas Moniz; aqui está o representante do governo e uma Mimi, que era amante dele. Esta sou eu. Tinha 28 anos." O registo é de 10 de janeiro de 1949; a ocasião a entrega do Prémio Nobel da Medicina a Egas Moniz que, impedido de se deslocar à Suécia, recebeu o galardão em casa. "Nunca perdoei ao Salazar não o ter deixado ir receber o prémio", desabafa.
Nesta altura Maria de Lourdes Tedeschi Bettencourt era ainda Maria de Lourdes de Almeida Campos e fazia parte de equipa multidisciplinar que durante um ano, no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, acompanhou, estudou e analisou o grupo de cerca de cem doentes submetidos à leucotomia frontal, a técnica cirúrgica que valeu a Egas Moniz o Nobel da Medicina.
Chegou ao Júlio de Matos em 1944. Um anúncio de jornal e a necessidade de estudar crianças com problemas mentais para finalizar a tese do Instituto Maria Luísa Barbosa de Carvalho que formava "peritos orientadores" levaram-na até lá. Uma entrevista com o diretor do hospital, um encontro com um ministro e o veredito: ela precisava de mais um curso e no hospital esperavam um ano. Foi então inaugurar os pavilhões infantis com o título de psicopedagoga. "Tínhamos dois pavilhões, um de rapazes e outro de raparigas, eram cerca de 75, o mais novo tinha 5 anos, mas a maioria eram adolescentes."
"Aquilo era homens de um lado, mulheres do outro e o pavilhão das enfermeiras, que me puxavam para lá, mas eles não me deixavam ir", conta. "Eles" eram Barahona Fernandes e Pedro Polónio - psiquiatras -, Miller Guerra (neurologista) e, mais tarde, Egas Moniz. Começou a trabalhar na equipa dele em 1947.
"O diretor chamou-me para ir conhecer o Egas Moniz ao gabinete dele. Era quase hora de almoço e os médicos avisaram-me logo: "Não lhe aperte a mão! Olhe que ele estende a mão a toda a gente, mas não aperte! Depois soube porquê. Ele tinha as mãos todas inchadas de papos por causa da gota. Todas as manhãs eram espremidas pelo enfermeiro, tinha dores horríveis, mas mesmo assim estendia a mão a toda a gente. Era um homem maravilhoso."
Maria de Lourdes participava em todas as fases dos doentes leucotomizados, antes e depois da operação. Fazia uma avaliação oito dias após a intervenção cirúrgica, um mês depois e um ano depois.
Durante um ano, a equipa elaborou o estudo que consistia em avaliar os doentes sujeitos à leucotomia. Maria de Lourdes tinha a seu cargo a realização de testes psicológicos e de entrevistas com os doentes. Quando perceberam que não funcionava? "Ao fim desse ano, mas eu acho que alguns nunca ficaram convencidos. Eu estou." E dá o exemplo de um dos pacientes que acompanhou, antes e depois da leucotomia. "Havia um homem que fazia umas depressões periódicas, era preciso isolá-lo, guardá-lo, porque senão suicidava-se. Antes da leucotomia era muito gentil quando vinha à entrevista comigo. Convidava-me sempre para jantar. E eu dizia: "Pois hoje não posso, já estou comprometida e tal e coisa." Eu, graciosamente, defendi-me sempre. Depois da leucotomia este homem ficou uma papa mole, sem iniciativa, quase que não me conhecia e por mais que o estimulasse não acontecia nada. É para esquecer, a leucotomia."
Egas Moniz já tinha sido proposto para ganhar o Prémio Nobel da Medicina por outras três vezes (1928, 29 e 30) pela invenção da angiografia cerebral, mas só em 1949 o galardão foi atribuído. Maria de Lourdes recorda a azáfama e o nervosismo que se vivia no Hospital Júlio de Matos naquele dia em que o dossiê a enviar aos jurados da Academia sueca sobre os resultados da leucotomia tinha de ficar pronto.
"Foi um dia grande, o dia em que terminámos a revisão do Prémio Nobel. Tínhamos doentes para ver e o Barahona foi para o pavilhão dos homens, que tinha uma porta de ferro que se fechava. Lá dentro havia o gabinete do enfermeiro e do professor. Ele estava ali e eu ficava do outro lado, com os mapas todos com os resultados à minha frente. Foram mais de cem, os leucotomizados, era a conta final." Continua: "Estavam os doentes em alvoroço, porque os que melhoravam queriam ir para casa, queriam por tudo ir para casa - muitos foram, mas outros não podiam. E então estavam numa ansiedade."
Assim que mais um resultado era verificado e apontado nos mapas, Maria de Lourdes atravessava de um lado para o outro. Abria o portão de ferro e dirigia-se ao gabinete do médico. "Num desses caminhos há um que foge de lá, agarra-se-me aqui ajoelhado aos meus pés e começa a gritar 'Eu quero!!! Escreva para eu ir para casa!!!!'." Afligiu-se Maria de Lourdes, os médicos e enfermeiros ficaram estáticos por momentos e lentamente colocaram-se atrás dela e atrás do doente. "'Levante-se senhor não sei quantos - eu já o conhecia - levante-se e venha comigo' e fui andando com ele até à grade. Quando chegou à grade alguém me agarra na cintura e puxa-me para trás e outro puxa o homem e fecha a grade." A história conta-a agora a rir-se, mas na altura a aflição foi geral.
O convite datilografado ainda o guarda, quase 70 anos depois. "Dr. Egas Moniz e D. Elvira Egas Moniz têm a honra de convidar a Sra. D. Maria de Lourdes de Almeida Campos para o jantar volante de sábado, 10 de dezembro, às 9 horas da noite, em sua casa, em honra de S.E. o senhor ministro da Suécia." A indicação era para levar smoking e a morada completava o cartão: "Avenida Cinco de Outubro, 73."
Nesse mesmo dia, em Estocolmo, o representante de Portugal fez um discurso de agradecimento em nome de Egas Moniz que, em Lisboa, recebia das mãos do representante da Suécia o conceituado prémio. "Era uma moradia baixinha." Maria de Lourdes tinha feito a sua trança e envergava um vestido comprido, cintura marcada, um decote de renda, longos brincos, lábios pintados. "Quando entrei na porta fiquei de olhos parados. A casa tinha um lambrim e por cima dele as faianças mais belas que eu possa ter visto. Ele levou-me então até à sala onde estava aquela multidão toda que veio do país inteiro. Falámos muito, houve muitos elogios, mas ninguém beneficiou nada, porque ele era como um preso político, o Salazar embirrou com ele e não o deixou sair do país. Tenho um desgosto enorme de ele não ter sido elogiado, de não ser considerado. Porque as leucotomias resultaram pouco, mas a coisa mais importante que ele fez, a arteriografia ao cérebro, "desapareceu"."
De regresso ao Júlio de Matos, Maria de Lourdes continuou o seu trabalho com doentes mentais, crianças e adultos. "Tinha a alcunha do anjo, dada pelos psiquiatras Barahona Fernandos, Pedro Polónio e Miller Guerra, neurologista. Dos homens mais inteligentes do país. Trabalhava com eles, levava as crianças com paralisia cerebral e eles mandavam-me muitos dos seus pacientes. Cada vez me interessava mais estar junto das pessoas perturbadas mentalmente."
O que não era, de todo, algo comum ou sequer muito bem aceite pelo meio social em que se movia. "O meu irmão uma vez passou por lá para me visitar. Ia no carro com o chauffeur a caminho do aeroporto e pediu para ele parar ali à porta do hospital. Quando voltou para o carro o motorista perguntou: "Está melhorzinha a sua irmã? Ninguém entendia o que eu fazia ali."
Maria de Lourdes era muito feliz, porém, a trabalhar no sítio onde o pai sempre se recusou a entrar. Trabalhava muito e com os melhores. Até que um dia desmaiou, caiu redonda no chão, com uma enorme hemorragia. Foi levada para o hospital e submetida a uma histerectomia - retiraram-lhe o útero e ficou a saber que não poderia ter filhos. Dias depois da operação, em convalescença no hospital, vê entrar pela porta do quarto, à hora do jantar, Luís. Conhecia-o das vezes em que ia ao aeroporto de Lisboa com cestas de vime cheias de fruta e legumes para enviar ao irmão que estava em Cabo Verde com a mulher e uma bebé de 2 anos.
"Eu estava à espera das enfermeiras e apareceu-me ele. Deu-me o jantar e no fim pediu-me em casamento. Eu tinha acabado de saber que não podia ter filhos, foi o maior desgosto da minha vida, porque queria ter 12." Aceitou. Casou-se oito meses depois, em setembro de 1952, tinha 32 anos.
"Ele tirou-me imediatamente do Júlio de Matos, foi condição para casar. Naquela altura todas as senhoras iam para o salão... Íamos para o Luso, éramos uns seis casais. As mulheres iam todas jogar a canasta, parece que era uma moda. Eu não jogava cartas. De maneira que elas iam jogar e eu não. "Mas o que é que tu andas a fazer?", perguntavam. Ninguém entendia." Maria de Lourdes preferia ficar a conversar com os homens. "Havia uma delas que nem exame de instrução tinha! Aprendeu francês e umas coisas assim, mas mais nada", conta com um ar de indignação, como se ainda hoje tivesse de estar a explicar por que razão nada daquilo lhe interessava.
Em casa, porém, fazia as tarefas que lhe competiam e cuidava do marido doente. "Ele era um homem precioso, corretíssimo, perfeito em tudo. Mas verifiquei, ao fim de pouco tempo de casada, que era um doente mental. Tinha sofrido um traumatismo e havia uma perturbação."
As crises agudizavam-se e ela fazia com ele longas viagens pelo mundo - Luís Tedeschi Bettencourt era piloto aviador e foi um dos fundadores da TAP e por isso usufruíam de milhas aéreas para viajar.
Era uma excelente cozinheira, garante. As visitas apreciavam a comida mas algumas estranhavam os interesses daquela mulher. "O meu marido era muito amigo do cónego Correia de Sá, havia uma convivência muito grande e ele gostava muito da minha comida. Um dia viu os meus livros de psicologia ao lado dos livros de cozinha e ficou bravo. Virou-se e disse: 'Olha, Luís, separa-me isto pelo amor de Deus, porque se ela junta a psicologia com os livros da cozinha estraga-te a cozinha toda'." Maria de Lourdes recosta-se na cadeira e ri-se, um riso baixinho, quase envergonhado: "Ah! Ah! Ah. Tinha uma graça, o cónego!"
Nunca Maria de Lourdes preferiu a cozinha à psicologia. Com o marido doente e com crises, continuou a exercer a profissão. Mais uma vez alertada pelos jornais, descobriu que os jesuítas iam criar um Centro de Estudos de Psicologia. Inscreveu-se e depressa teve direito a consultório. Lá acompanhou mais de 300 crianças. E nunca deixou de estudar. Em 1963 foi aluna do primeiro curso de Psicologia que foi ministrado no ISPA (Instituto Português de Psicologia Aplicada). Maria de Lourdes não parava.
Foi trabalhar para o Liceu Pedro Nunes, onde conseguiu implementar uma experiência de pedagogia de grupo, que consistia numa revolução à época: "Fiz uma diabrura tremenda, de 1968 a 75. Fiz um centro de psicologia, vi as turmas e misturei alunos: fraquinhos, médios e bons. Com preleção e recomendação de se ajudarem mutuamente e os pais os incitarem nisso. Todas as semanas dava uma conferência aos pais. Refilaram muito."
Um desses rapazes, cujos pais não ficaram satisfeitos com o método da psicopedagoga, era Marcelo Rebelo de Sousa. "Chegou lá ele e o irmão mais velho. Meninos belíssimos, estudantes fantásticos. O mais velho conheci mal, fez os testes e foi embora, mas o Marcelo era um encanto de menino. Não se ia embora sem bater à porta, "adeus!", "até logo", "até amanhã!", sempre muito bem-disposto. Mas foram fazer queixa porque não estavam numa turma A. E disse-lhes: não estão, estão numa turma C ou D onde vocês são os melhores, porque ele era um menino inteligentíssimo. Ainda não desisti de falar com ele, a ver se ele se lembra de mim."
Maria de Lourdes estava a trabalhar no Liceu Pedro Nunes quando aconteceu a Revolução. "Na véspera tinha estado com a família Spínola. O Chico e o general ficaram em casa e o António entregou-nos a mulher. Eles moravam mesmo em frente a nós, eram como irmãos para o meu marido. E estranhámos. Fomos dar um passeio, ver uma exposição. Não sabíamos o que estava a acontecer, ninguém sabia. Até que no dia seguinte o António Spínola telefona ao meu marido a contar o que se passou. Ele falava alto e eu ouvi e comecei a gritar: 'É Spínola, é Spínola!' Para mim era positivo, porque para mim ele era um homem muito bom, muito inteligente, muito bravo."
Maria de Lourdes está sentada na receção, à espera. Um vestido preto de malha, um cinto fininho em tom dourado, um colar e um xaile branco de lã. O cabelo é curto, todo branco, despreocupadamente penteado.
Tem um andarilho e uma bengala pendurada, porque nem sempre precisa deles, nem de um nem de outro. "Tenho uma lesão qualquer no centro de equilíbrio que ninguém trata. De repente, involuntariamente, tenho um empurrão para um lado ou para o outro e posso cair. Isto protege-me", explica. Assim que pode livra-se deles, na verdade.
Leva ainda consigo uma mala pequena, onde guarda as chaves e o telemóvel e traz o jornal do dia. "Leio o jornal todos os dias, leio o jornal 'i', desde o primeiro número."
No dia 24 de janeiro fez 100 anos. Não gosta. "Não. Não gosto de ter 100 anos. Sinto-me um bicho do jardim zoológico [ri-se]. Porque acho que não é nada de excecional. Trabalhei o meu cérebro para se conservar vivo. É natural que ele comece a degradar-se e eu vou ficar infeliz. E o que é que vale uma pessoa que vê mal, que deixa de ter o prazer do trabalho que fez?"
Que não se pense que Maria de Lourdes traz amargura nestas palavras. São factos que se limita a constatar: "Vejo mal, ouço mal, não tenho as mãos a funcionar." As maiores tristezas ficaram para trás. O internamento do marido, em 1985, deixou-a "vencida", mas um grupo de mulheres do Clube Soroptimista, que ainda integra, salvou-a da tristeza.
"Não sei como fui viva até aos 30 anos, não sei. Mas depois da operação não tive mais nada. Eu sou simples, não tenho vaidades. Aprecio o meu cérebro, é o que eu mais respeito. É a maneira como penso, a maneira como resolvo as coisas, a empatia que estabeleço. Mas passei ao lado da vida em muitas coisas, porque não aderi a um casamento normal."
- Não teve outras paixões?
- Ter, tive, mas resisti a todas. Encontrei a pessoa que faria uma vida normal comigo, mas a minha ética não mo permitiu. Tinha 84 anos quando o meu marido morreu e aí disse já não vou aceitar homem nenhum, porque agora já não é altura disso. E ele estava vivo quando o meu marido morreu...
- Mas tem pena?
- Pena? Tenho pena de uma coisa: de não ter feito o doutoramento. Devia ter ido à entrevista na Universidade Nova.