"Para os romanos, a Península Ibérica era uma terra de grande fascínio, de cujo subsolo se dizia brotar ouro"

Trinidad Nogales fala de como a cultura romana é essencial para entender Portugal e Espanha e da Península Ibérica como fachada Atlântica do império com capital em Roma. A diretora do Museu Nacional de Arte Romana de Mérida fala também do Festival de Teatro Clássico que a sua cidade organiza todos os anos e se inicia a 22 de julho: "A experiência de nos sentarmos num teatro romano como o de Mérida, à noite, e assistirmos à representação de uma obra é como recuarmos 2000 anos."
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Comecemos pela conquista romana da Península Ibérica. Qual foi a motivação dos romanos para virem tão para o Ocidente?
Roma, depois de ter unificado a Península Itálica, inicia um processo de expansão para o exterior. Já tinha posto os olhos no Oriente, que tinha muitos atrativos, pela riqueza dos seus territórios, pelo valor que tinha para a cultura grega e, a seguir, já com Júlio César, tinha terminado a conquista das Gálias. Como os romanos já tinham eliminado do tabuleiro geopolítico o seu inimigo ancestral que era o império cartaginês, nas Guerras Púnicas, uma vez que delenda carthago, ficam conscientes de que o Ocidente era um território atrativo. Para os antigos, os romanos, a Península Ibérica era um território que exercia um grande fascínio porque todas as fontes falavam de grandes riquezas, de uma terra de cujo subsolo praticamente brotava ouro. Tinham um certo sentido mítico do território. Estavam lá as Colunas de Hércules - o estreito de Gibraltar -, que era o final do mundo conhecido. Eles iniciam a conquista da Península Ibérica, precisamente, por esse afã de controlar o Mediterrâneo. Vão entrando, começando pela costa da área de Tarragona, e vão penetrando até ao interior. A conquista da Península Ibérica não foi um processo fácil, porque a Península não era um território uniforme, era um mosaico de muitas culturas. Então, Roma, que era uma máquina militar muito potente, começa esse processo de penetração, de controlo do território e de assimilação das culturas autóctones.

Essa conquista começa ainda no período da República e depois intensifica-se com Júlio César e com Augusto?
Sim. É feita com grandes protagonistas, os chefes militares que acompanhavam essas campanhas. A Península Ibérica foi, inclusivamente, cenário dessas lutas que também tinham entre eles - as guerras civis -, sobretudo os territórios mais em contacto com Roma.

Em que momento é que podemos dizer que a Península já era romana?
Nos finais do século I a.C., quando Augusto consegue finalmente dominar os povos do Norte - cântabros e asturianos -, já praticamente se pacificou o império. Quem o diz é o historiador Dion Casio. Diz literalmente: "Terminada esta guerra (referindo-se à do norte da Península Ibérica contra cântabros e asturianos), Augusto dá licença aos veteranos da V e X legiões e manda-lhes dar uma cidade do confim do Ocidente, Augusta Emerita" (atual Mérida), o que significa que Augusta Emerita vai ser uma fundação de Augusto que simboliza a pacificação da Hispânia e que vai restruturar administrativamente a Península Ibérica.

Essa resistência dos cântabros e dos asturianos é pouco falada em Portugal, pois assinalamos sempre a resistência dos lusitanos, um povo que assimilamos como português, mas que é também muito da parte ocidental de Espanha, da Extremadura. Essa resistência heroica é mítica ou foram os povos ibéricos mesmo capazes de enfrentar os romanos?
Há aí, como em tudo o que passa à história, uma parte de mito e uma parte de realidade. Nós conhecemos isso pelas fontes, pela arqueologia e, também, pela literatura do momento. Mas há um fator muito importante, que é o seguinte: no século XIX entraram na moda os personagens heroicos como origem das nacionalidades. Em França, por exemplo, Vercingétorix que luta contra Júlio César na Gália, em Portugal é Viriato, o pastor lusitano... Essas personagens e povos heroicos que são utilizados no século XIX como elementos de identidade, para criar uma identidade. Mas em toda a zona fronteiriça, da Raia, entre Espanha e Portugal, em toda a área da antiga Lusitânia, Viriato é uma personagem mítica.

Depois de conquistada, depois de começar a explorar o ouro, a Península manteve-se periferia ou, pelo contrário, ganhou importância como fachada atlântica?
Inicialmente éramos periferia, ou seja, para um romano, o destino da Península Ibérica não era um bom destino porque era muito longe de Roma, não estava no centro da política romana. O romano preferia estar na Península Itálica ou na Gália, inclusivamente. No entanto, com o processo de conquista de toda a Península e, sobretudo, com a exploração mineira de toda esta zona do Ocidente peninsular enormemente rica em minérios, Roma teve muitíssimo rendimento económico, muitíssimo. Não esqueçamos que com todos estes metais, além de se poder cunhar moeda, também se podia manter toda essa máquina e toda essa estrutura político-administrativa e militar, o que era enormemente importante.

Não eram só metais preciosos, eram também metais para a metalurgia?
Claro, toda a exploração mineira que era impressionante e que ainda se pode ver e visitar. Então, a Hispânia deixa de ser esse território periférico, para passar a desempenhar cada vez mais um papel de maior protagonismo, e Roma descobre que há outra via muito importante, que é a fachada atlântica. A fachada atlântica começa a ser explorada desde Augusto e contribuiu muito para a conquista da Britânia, por exemplo, que se realiza através da Gália, mas também da fachada atlântica. A máquina bélica romana era muito potente, desde as grandes batalhas navais ao resto. O poder naval do mundo romano era praticamente insuperável no seu tempo. Então, esta fachada atlântica converteu-se num foco de atração importante e vai haver uma relação estreita entre a Lusitânia e a própria capital do império, Roma. Vai haver muitos personagens da política romana do século I até praticamente ao século II que vão ser governadores da Lusitânia; são personagens muito vinculados ao poder de Roma. No século II entram os imperadores nascidos já na Hispânia, como Trajano, que nasce aqui; Adriano nasce em Roma, mas tem família na Hispânia. Assim, são personagens que veem o império com uma visão mais integradora das províncias, porque eles são provinciais e têm uma origem provincial. Estão conscientes de que o império é Roma, mas com todas essas províncias que são as que tornam possível que Roma tenha essa estrutura económica, política, social, etc., tão potente.

Emerita é fundada por Augusto. Podemos dizer que era uma pequena Roma, ou seja, que era uma cidade acima de qualquer outra na Península Ibérica?
Era uma cidade, creio, que teve desde o princípio uma intencionalidade política, pois havia outras colónias anteriores onde se poderia ter erigido outras cidades. No entanto, ele decide criar uma cidade político-administrativa que estivesse situada numa posição muito favorável, como é o caso de Mérida. Mérida tem, mesmo atualmente, uma posição estratégica muito favorável porque está equidistante da costa meridional, da fachada atlântica e, consequentemente de Lisboa (Olisipo), do Norte através da via da prata e da meseta. Ou seja, a posição que tem não é uma posição casual, obedece a um critério geopolítico.

O rio Guadiana também é importante na escolha do local da cidade?
Sim, claro. Nas cidades, as fachadas marítimas ou fluviais são fundamentais, porque os rios também são vias de comunicação, de materiais, de aprovisionamento. As cidades romanas precisavam de ter uma dotação aquática muito importante. Aqui, a água chegava, como a todas as cidades, pelos aquedutos. A própria Olisipo, que está nas margens do rio e próximo do mar, tem grandes aquedutos para trazer a água potável. As cidades romanas precisavam de muita água, não só a que era necessária a nível doméstico mas também para todas as indústrias que estavam geralmente nas margens do rio, para o sistema de banhos públicos, de termas, para os sistemas hidráulicos, para a higiene. Agora, com a pandemia, diz-se às pessoas que lavem as mãos, e isto é algo que Roma introduz.

Mérida era mais importante do que as outras capitais provinciais? Há um momento em que há três províncias...
Sim, a Tarraconense, com a capital em Tarraco, a Bética, com capital em Córduba (Córdova), e a Lusitânia, com capital em Augusta Emerita. Tarraco é a cidade romanizada mais antiga, porque é onde os romanos chegam pela primeira vez. A costa Leste da Península é onde eles vão, paulatinamente, penetrando com maior potência. Córdova também tem uma fundação anterior - existia uma cidade mais antiga da época republicana. Augusta Emerita é fundada no ano 25 a.C. e vai desenvolver-se como uma grande cidade do Ocidente. Emerita vai estar entre as cinco ou seis cidades mais importantes do mundo antigo, vai adquirindo um papel muito protagonista.

Qual eram aproximadamente os limites da Lusitânia romana, apanhava todo o sul de Portugal?
Havia uma parte que correspondia efetivamente ao território bético, parece que o limite entre a Lusitânia e a Bética estava no Guadiana. Eles utilizavam as vias naturais como limites de demarcação dos territórios. Uma parte estava na Lusitânia e outra estava na Bética. O sul da atual província da Extremadura, a província de Badajoz, era a Bética.

E para norte, a Lusitânia ia até onde?
Chegava praticamente ao confim da zona entre as províncias de Salamanca e Zamora; em certa medida, a demarcação era o Douro. Numa época muito tardia fala-se inclusive numa província "transduriana", ou seja, além do Douro.

O facto de ter havido imperadores a nascer cá ou com raízes cá tem que ver com aquela centralidade que a Península ganha ou sobretudo tem que ver com a projeção das famílias?
Tem que ver sobretudo com a projeção do poder dessas famílias, que não é algo que surja por acaso, mas que tem que ver com capítulos da política romana em que as famílias poderosas vão tentando colocar-se numa boa posição para alcançar esse poder.

É neste museu que existe a coleção mais abundante de vestígios romanos em Portugal e Espanha?
Eu creio que a coleção do Museu Nacional de Arte Romano, pela quantidade, pela qualidade, portanto, tanto qualitativa quanto quantitativamente, é muito completa. Entre outras coisas, porque através da coleção do museu de Mérida podemos fazer um percurso por todas as facetas fundamentais da sociedade antiga. Podemos conhecer como era o mundo do ócio, do espetáculo - teatro, anfiteatro, circo; podemos saber como eram as suas casas e que objetos quotidianos possuíam, como se organizavam internamente, que alimentos comiam; podemos saber como era a sua saúde; graças às inscrições funerárias sabemos de onde vinham essas pessoas, se eram oriundas daqui ou se vinham de outras zonas - de Conímbriga, de Itálica -, epigrafia, os textos das lápides funerárias, é imensamente importante pela quantidade de informação que nos proporciona, porque fala-nos dessas pessoas que não já conhecemos, da sua atividade profissional, da vida que tiveram, como se chamavam as suas famílias. Graças a essa onomástica, a toda essa genealogia de personagens, às vezes, inclusivamente, nós, os historiadores, podemos tecer histórias, como guiões de um romance muito interessante e aproximamo-nos de personagens que viveram há muito tempo. Por exemplo, Cornelius Bocchus que era de Salacia, atual Alcácer do Sal, e um personagem fascinante, um homem que foi literato, ministro das Obras Públicas da Lusitânia, um homem com uma grande ambição política, de origem autóctone, mas muito ligado a Roma, muito em linha com o poder central de Roma. Foi um grande político do seu tempo. Este Cornelius Bocchus, provavelmente, é quem vai fazer grande parte da monumentalização das nossas cidades lusitanas. É ele quem, supostamente, inicia a exploração das minas, das pedreiras de mármore da área de Estremoz. É um personagem fascinante. Há uns anos, a Academia de História Portuguesa e a Real Academia de Madrid fizeram um encontro internacional sobre Lucius Cornelius Bocchus e, no ano passado, o Museu Nacional de Arqueologia de Lisboa fez uma exposição que se chamou Lucius Cornelius Bocchus, Um Lusitano Universal, para destacar este sentido de mundo global que teve o império.

Sendo um museu espanhol, vocês também apoiam escavações em Portugal. Portanto, não há fronteiras na arqueologia?
As fronteiras são contemporâneas. Nós fomos sempre um território unido, unívoco com o mesmo objetivo. Éramos um território homogéneo, a nossa fachada de mar era a fachada da costa atlântica e o território do interior tinha outro sistema de comunicação completamente diferente. Eu sempre disse, desde que era estudante, que o museu de Mérida é o museu da Lusitânia, é um museu de toda a Lusitânia. Quando uma pessoa da nossa comunidade lusitana atual de Portugal e de Espanha entra neste centro, tem de se sentir identificado com esta cultura, pois ela é a nossa cultura. É a cultura que há em Évora, que há em Beja, que há em Conímbriga, que há em Olisipo (Lisboa), que há no Algarve, que há em Bracara Augusta (Braga), que há em todo o território da nossa Lusitânia. É uma cultura que nos legou todo este material e que nos ajuda a entender como foi essa história comum e esse momento de civilização que partilhamos no que agora são dois territórios diferentes no sentido político atual. Eu sempre disse que quando vou a outros países da Europa sinto-me estrangeira, pela língua, por variados motivos, mas quando estou em Portugal estou em minha casa. E neste museu há uma coisa que tenho de salientar: depois do visitante nacional espanhol, o primeiro visitante é o português. Por isso fizemos uma campanha de imersão linguística para termos a documentação em castelhano e em português.

Estão a escavar também em Ammaia, perto de Marvão. O que é que pretendem encontrar lá?
Bem, nós decidimos fazer um projeto de arqueologia no exterior porque o museu, como Museo Nacional de Arte Romano, pareceu-me importante que tivesse um projeto externo, noutro sítio que não fosse Mérida, onde sempre trabalhámos e onde estamos sempre localizados. Então, pensámos em Ammaia porque nos pareceu que era um projeto muito interessante, pela sua conceção científica e pelo seu sítio arqueológico, totalmente livre e de propriedade pública, da Fundação Cidade Romana de Ammaia, tutelado cientificamente pela Universidade de Lisboa, pelo professor Carlos Fabião, com quem temos uma magnífica relação há vários decénios. Pareceu-nos, portanto, um projeto muito interessante. Há algo muito importante, que é ver como o modelo da capital provincial se transplanta por todo o território, o que é muito romano.

Ammaia não é uma cidade, é mais pequeno do que isso?
Ammaia era uma cidade, mais pequena, mas que tinha vários fatores muito favoráveis. Primeiro, estava numa rota de comunicação importante; segundo, tinha uma estrutura comercial muito alicerçada e, sobretudo, uma zona de exploração mineira e, também, de floresta, da madeira, etc., e tinha muitos recursos naturais. Então, os romanos, que não eram exatamente tontos, viram a possibilidade de se estabelecerem nestes núcleos intermédios. Sendo um núcleo intermédio, era uma cidade que necessitava dos seus serviços e, há dois anos, localizámos o anfiteatro de Ammaia. Porquê? Porque tinha uma população que tinha de se divertir.

Mérida fez um grande esforço no turismo, por causa do passado romano. Tem também um festival de teatro clássico que aproveita o fantástico teatro que tem. Sente que quando há o festival, que neste ano se inicia a 22 de julho, é como se as pessoas tivessem uma oportunidade de voltar 2000 anos atrás?
Eu penso que a experiência de nos sentarmos num teatro romano como o de Mérida, à noite, e assistirmos à representação de uma obra é como recuarmos 2000 anos. Estamos a ouvir textos escritos no século V ou no século IV a.C. que ainda hoje estão atuais. Os textos das grandes tragédias gregas, das comédias de Aristófanes, os textos de Platão, etc., são textos totalmente atuais que, em geral, são muito críticos com o género humano - a malícia, a falta de ética, a traição -, são as virtudes e os vícios dos seres humanos. Eram os temas das grandes obras gregas e depois latinas. Na Grécia, as obras eram escritas para um concurso. Na Atenas do século VI e do século V fazia-se um concurso, e as pessoas concorriam, escreviam uma obra e apresentavam-na a esse certame. Qual era a obra que ganhava? A que era moralmente mais exemplar, ou seja, aquela que ensinava aos cidadãos a ética democrática e um sentimento de educação social.

De tudo aquilo que estudou, de tudo aquilo que conhece do mundo romano, qual foi o grande legado que deixaram a Portugal e a Espanha? Foi a língua ou foi muito mais?
Eu creio que a língua é um tesouro. As nossas línguas portuguesa e espanhola, além do mais com a translação para outros continentes, transformaram-se em duas línguas do mundo global desde os séculos XV e XVI. Mas não foi só isso. Roma cria um sistema de estrutura político-social que é a nossa estrutura. Roma encontra um território praticamente organizado de maneira tribal, muito territorial, e traz um conceito absolutamente moderno de organização do território, de organização geopolítica, de exploração económica. Na realidade, se pensarmos bem, esse é o primeiro mercado comum europeu, porque é o primeiro sistema político que traz unidade linguística, unidade económica e monetária - os territórios tinham a mesma moeda -, unidade territorial e de comunicações - todas as capitais do império estavam ligadas por grandes vias terrestres e marítimas -, em grande medida, a unidade ideológico-religiosa, a religião do Estado. Havia outras religiões autóctones, orientais, etc., mas há que reconhecer que Roma foi enormemente permissiva, assimilou com muita facilidade os cultos, as crenças locais. A única coisa que fazia era pôr um nome em latim à divindade.

E nós hoje somos herdeiros desses romanos?
Sim. A nossa raiz cultural ocidental tem uma percentagem altíssima da cultura clássica - o direito, a medicina, as vias de comunicações, o sistema geopolítico que manteve as estruturas geopolíticas romanas, a Igreja manteve as estruturas latinas e romanas na própria articulação da realidade eclesiástica. O Império Romano criou um sistema político com uns níveis de conceção que, atrever-me-ia a dizer, até praticamente à Revolução Francesa se manteve em grande medida. Claro que a Revolução Industrial já trouxe uma mudança absolutamente enorme para a história da humanidade e, agora, no século XXI, a revolução tecnológica alterou e mudou toda a estrutura, mas a nossa raiz essencial é plenamente romana. Isto é algo que repito sempre aos jovens: a maior pobreza não é a material, a maior pobreza não é não ter um telemóvel de última geração como tem o amigo ou o vizinho, a maior pobreza é a cultural. Essa não se pode adquirir em nenhum mercado, adquire-se com o conhecimento do nosso passado. Ao aprendermos e conhecermos o nosso passado entenderemos e criaremos um bom futuro, mas se não conhecermos o nosso passado como povo, não nos sentimos identificados com esses elementos que fazem parte da nossa cultura. As pessoas precisam desses elementos de referência.

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