Nova Zelândia. Jacinda, a super-primeira ministra contra a covid-19
"Ups, isto é uma imagem estranha, a minha chávena suja de baton..." Jacinta Ardern, a primeira ministra neo-zelandesa, terminou o live do Facebook de segunda-feira a mostrar a chávena branca suja de vermelho aos espetadores - e eleitores - que a tinham acompanhado numa conversa sobre o coronavírus. Foi num dia difícil, depois do anúncio de que a Nova Zelândia iria continuar em confinamento até dia 27 de abril - segunda-feira.
O anúncio tinha sido grave e já havia muitas forças - na oposição e na economia - a pedir o regresso a uma maior normalidade. Mas a primeira-ministra neozelandesa não se desarmou: manteve a habitual conversa no facebook no tom familiar de quem está a falar com amigos - como todos conhecemos essas caras distorcidas, poses amarrotadas, das videochamadas destes dias de confinamento. No final, as palavras que tem usado sempre, como um slogan: "Fiquem em casa, fiquem seguros, sejam gentis."
"Sejam gentis", é esta a mensagem dela", repete Peter Bale, jornalista em Londres, e preso pelo fim dos voos transatlânticos à sua terra natal, a Nova Zelândia. "Ela fala com autenticidade, com a pronúncia de uma normal neo-zelandesa de Auckland, e parece sempre que está a falar para cada indivíduo. Sentimos como se estivesse a falar connosco."
As capacidades comunicativas de Jacinda ajudaram-na a ganhar as eleições de 2017 - foi a mais nova líder em 150 anos e a primeira a ser mãe no cargo. Depois, a forma como lidou com o massacre de Christchurch, mais uma vez, com a empatia para com a comunidade muçulmana, há cerca de um ano, foi elogiada. E a Jacindamania a que deu azo, deu-lhe também trunfos para lidar com esta crise.
E tem sido assim: uma mistura de decisões difíceis - com que todos os líderes tiveram de confrontar-se, mas nem todos estiveram à altura - e empatia - que nem todos sabem ou conseguem usar. O equilíbrio entre mostrar-se uma pessoa normal - aparecendo de camisola de treino desbotada, num live do Facebook a que chegou atrasada porque estava a deitar o filho - e ser uma líder assertiva - como quando se zangou a sério quando o seu ministro da Saúde fez uma viagem à praia no início da doença (era ainda verão na Nova Zelândia). Ou uma política a sério quando cortou 20% no vencimento do governo todo.
O jornalista Peter Bale - agora a trabalhar no jornal local Newsroom - não estava à espera do que assistiu. "Como alguém que não vive no país há 30 anos, surpreendeu-me a autoridade dela e com o apoio que os cidadãos parecem preparados para dar-lhe".
E estão mesmo: as taxas de aprovação são de mais de 80 por cento, uma bênção em tempos tão difíceis para todos. Nem poderia ser de outra forma, tendo em conta os excelentes resultados no combate à covid-19: o país conseguiu conter o número de infetados - 1107 - e o número de mortes, apenas 13, é um dos mais baixos por número de infetados. "O ponto não é só que ela é carinhosa e estranhamente normal", dizia Pilita Clark, num enorme elogio feito no Financial Times de segunda-feira. "Ela também é claramente competente num tempo em que tantos outros não são".
É verdade que a Nova Zelândia é fácil de controlar, com as suas fronteiras a dar para o mar e uma população menor do que Nova Iorque (4.8 milhões). Mas o sucesso na contenção do vírus deveu-se, fundamentalmente, a decisões políticas. "A Nova Zelândia ofereceu uma resposta modelo, com empatia, clareza e confiança na ciência", diz Shaimaa Khalil, da BBC.
A Nova Zelândia fechou-se em casa quando ainda tinha apenas 120 infetados. "Também a Itália já só teve 120 infetados", respondeu a primeira-ministra aos que lhe perguntavam se não era demasiado cedo. "Ela é que escolheu ir "forte e cedo" - parafraseando uma tática famosa da equipa de rugby nacional, os All Blacks - fechando o país a todo o contacto exterior, fechando todos os negócios e forçando um confinamento total", diz Peter Bale. "Além disso, ela aparece como extremamente transparente, incluindo quando não sabe o que as coisas vão dar."
A clareza dos planos, detalhados e amplamente divulgados, envolviam quatro fases bem definidas e o que nelas se podia, ou não, fazer (um pouco à semelhança do plano português). A população neo-zelandesa também ajudou, cumprindo as regras, respondendo ao apelo de "união contra a covid-19" do governo, e às palavras da própria Jacinda que chamou várias vezes ao país "a nossa equipa de cinco milhões".
O mundo está em stress, angustiado como nunca, e precisa de líderes em que se consiga inspirar, até porque os maus exemplos abundam. A maior parte dos muitos artigos que apareceram na imprensa anglo-saxónica comparam o percurso da Nova-Zelândia contra a covid-19 com o que foi - e continua a ser - mal feito nos EUA e no Reino Unido. "Sem queixas sobre os media, sem paranóias sobre funcionários do estado que dizem a verdade", dizia Charles P. Pierce, num artigo da Esquire cujo título, direto, era "Tudo o que é preciso é um líder com credibilidade e que diz a verdade". A jornalista Uri Friedman da revista norte-americana Atlantic, chamava a primeira ministra neo-zelandesa, a "líder mais eficiente do planeta" com "um estilo que colhe junto das pessoas." O Financial Times vai mais longe e chama-se "Santa Jacinta" uma " líder para tempos difíceis".
Não é habitual uma mulher colher tantos elogios, sobretudo quando, como diz Sara Falcão Casaca, professora do ISEG e especialista em igualdade de género, e líder "está historicamente mais afastada das formas tradicionais de exercer o poder". Ao demonstrar toda a sua empatia, mas, mais que isso, normalidade, Jacinda está "como várias mulheres líderes - mas não todas, não se pode generalizar - que se sentem seguras em revelar um estilo diferente do padrão tradicional masculino", explica.
E ela tem tido essa coragem. Mas não é estranho, por outro lado, que as mulheres líderes tenham tido resultados bons nesta crise, como explica a headhunter Soledad Duarte, da Invesco Transsearch. Estão envolvidas algumas características que quem lida com a liderança no feminino reconhece.
"Sempre defendi que liderar é servir e, agora, tenho acrescentado que liderar é servir e cuidar", diz Soledad. "Parece-me que as mulheres estarão mais despertas e preparadas para cuidar e o combate ao Covid 19 é, manifestamente, um cuidar dos outros, principalmente dos mais frágeis. As lideranças femininas são, tendencialmente, multitasking e por esta razão darão uma melhor resposta aos desafios desta crise. Depois tenderá a ser também mais rápida na execução, o que facilita." Foi o que aconteceu na Nova Zelândia.
É essa também a tese de Cindy Gallop, especialista em liderança feminina e co-autora do estudo da HBS, 7 Lições de Liderança que os Homens podem Aprender com as Mulheres e citada recentemente pela Forbes. "As mulheres têm de cultivar as qualidades tradicionalmente masculinas e tradicionalmente femininas. Ter um repertório diverso de estratégias de liderança claramente serviu as mulheres nesta crise."
Isso inclui, por exemplo, ouvir os outros, e fazer as perguntas certas e estar disposta a ouvir as respostas. Algo que Jacinda Ardern tem fama de fazer. "Uma mulher na liderança pode ajudar nisso, pela facilidade de trabalhar em equipa e pela partilha de tarefas pelos melhor preparados para cada tarefa. Como as mulheres são conciliadoras, tentam encontrar soluções equilibradas tendo em consideração todas as perspetivas, sem esquecer o todo como uma visão de helicóptero sem se concentrarem apenas em algumas áreas de focus", diz Ana Torres, líder em Portugal da Professional Women"s Network.
Peter Bale explica que Jacinda Ardern tem demonstrado uma "atenção ao detalhe" rara em políticos do seu nível. "Tem sido extraordinária, desde saber o número do tipo das máscaras e outros materiais até às explicações do estádio da covid-19."
O Financial Times fala disto também em relação às políticas, e de como isso levou a políticas onde o pormenor marca a diferença: o aumento da largura das ciclovias, os canais estatais que se dedicaram à educação - como em Portugal - ou a distribuição de computadores pelas crianças sem meios, além da oferta de internet em casa.
E os exemplos acumulam-se. Antes da Páscoa, a conferência de imprensa da primeira-ministra acabou de uma forma surpreendente. Com ar sério, Jacinda terminou dizendo que da lista de trabalhadores "essenciais" faziam parte a "fada dos dentes e o coelho da Páscoa". "Mas, como podem imaginar, nesta altura eles vão estar provavelmente muito ocupados, nas casas deles, com as suas famílias e a tratar dos seus coelhinhos", ninguém achou estranho.
Quando Boris Johnson fez referência a uma enfermeira neozelandesa que o tratou - a par com o português - a primeira-ministra anunciou na conferência de imprensa que dá, praticamente todos os dias, que já tinha falado com ela, através do Facebook.
Talvez Jacinda Ardern tenha percebido que se podia atrever a ser diferente, sendo agora ainda mais compensada por isso, porque as lideranças tradicionais, musculadas, não têm dado grandes resultados. Ou talvez ela seja um sinal de como esta crise vai mudar as lideranças para sempre tanto ao nível dos países como das organizações.
É isso que defende a chairwoman de uma das principais empresas de liderança executiva mundial, a Egon Zehnder, Jill Ader. "Este não é um tempo para a invencibilidade. Em face da covid-19 nenhum de nós o é, invencível. Precisamos de líderes que se atrevam a ser vulneráveis e mostrem o quanto se preocupam com os outros. As lideranças e os legados serão feitos ou desfeitos nos próximos meses".
Jacinda Ardern percebeu isso muito antes de muitos outros líderes mundiais. Até porque sempre o soube.