Gloriosa antecipação 

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Há certamente momentos revolucionários na história britânica, uns assim chamados como a Gloriosa Revolução de 1688, outros nem por isso, como a Magna Carta, simbólica limitação ao poder real ainda na Idade Média. Mas a grande força da democracia britânica consiste no gradualismo com que foi sendo construída, passo a passo, com cada avanço no sentido da modernidade a ser irreversível ao longo dos séculos, culminando no voto universal em 1928. Uma pujança democrática baseada em consensos sociais que explica a ausência de necessidade de uma Constituição formal. Os britânicos conhecem bem as leis pelas quais se regem.

Ora, a demissão ontem de Liz Truss da chefia do governo, depois de peripécias várias acumuladas em tão poucos dias, que vai ficar com o recorde do mais efémero dos primeiros-ministros, traz pelo menos três desafios ao Reino Unido: o primeiro é o Partido Conservador encontrar com celeridade um novo líder, automaticamente chefe de governo; o segundo é garantir que ninguém questiona a legitimidade desse primeiro-ministro, o que pode ter de passar por uma ida antecipada às urnas, como pede a oposição mas só possível se os conservadores concordarem, pois detêm maioria absoluta na Câmara dos Comuns; o terceiro é contrariar o difícil momento internacional e relançar as ambições que justificaram o Brexit, uma nova pujança económica que não se coaduna com a perda já anunciada para a Índia do estatuto de detentor do quinto maior PIB mundial.

Para suceder a Truss, fala-se de Rishi Sunak, o seu rival derrotado nas recentes eleições internas, de outros barões e baronesas partidários, e até de Boris Johnson, o primeiro-ministro que venceu as eleições de 2019 mas que se demitiu também por peripécias várias, como festas em pleno confinamento por causa da pandemia (há quem diga que talvez mais perdoável pelo eleitorado do que as reduções de impostos para ricos que Truss chegou a defender e foram a sua desgraça). Se o novo líder decidir aproveitar a maioria absoluta e governar até 2024, inícios de 2025, cumprindo toda a legislatura, está no seu direito, como já foi dito, e certamente o Reino Unido haveria de lidar com isso. Mas aproveitaria a todos, neste momento em que a própria casa real britânica tem novo líder em Carlos III, que à frente do governo estivesse um político respaldado nas urnas pela maioria do povo e não escolhido por militantes ou até por colegas deputados. Um primeiro-ministro, conservador ou trabalhista (o partido de Keir Starmer lidera folgadamente nas sondagens), para quatro ou cinco anos e não para 44 dias. Como se viu pelo longuíssimo reinado de Isabel II, as instituições no Reino Unido ganham credibilidade quando se mostram duradouras e consistentes. Se a primeira decisão do novo líder conservador for uma ida imediata às urnas, mesmo com a atual impopularidade, então parabéns por uma ousada mas gloriosa antecipação.

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