Pode haver uma interpretação benigna para a insinuação do juiz Carlos Alexandre de que teria havido tramoia no sorteio que ditou que a instrução da Operação Marquês fosse distribuída a Ivo Rosa. A saber: que a acusação teria falhas, as provas não seriam suficientemente sólidas, haveria pontos controversos e assim a melhor forma de tudo correr segundo as convicções de Carlos Alexandre seria ele ser o juiz da sua própria conduta..Esta interpretação já seria suficientemente grave e faria com que ficasse criada a legítima sensação de que este juiz, no mínimo, não é a pessoa indicada para conduzir um processo da dimensão e gravidade deste..Não há, porém, forma de olhar sequer com condescendência para o que o juiz Carlos Alexandre foi à RTP fazer. O objetivo foi claro: tentar mostrar aos portugueses que há uma grande conspiração para impedir que José Sócrates seja condenado..Para tal não se importou de pôr em causa um seu colega e de tentar condicionar as suas decisões; não se incomodou com violar o dever de reserva e o recato a que está obrigado e não hesitou em levantar suspeições graves sobre o funcionamento da Justiça. Nada que surpreenda. Carlos Alexandre já nos tinha brindado com uma entrevista, em setembro de 2016, em que, de forma descarada falava da Operação Marquês e fazia graçolas sobre um arguido que estava a investigar. O Conselho Superior da Magistratura não achou mal....Carlos Alexandre sabe muito bem o que fez. Quis mais uma vez manipular a opinião pública, agora dando a entender que tudo o que possa acontecer no processo e que ponha em causa as suas convicções não passa de um truque para livrar o ex-primeiro-ministro de uma condenação..O juiz está convencido de que ter feito, no fundo, a acusação não chega. Também devia ter sido ele o encarregado de analisar a validade das provas que ele próprio já validou e, tudo o indica, proferir também a sentença. Ou seja, Carlos Alexandre não está interessado em fazer justiça, não está interessado no regular funcionamento da justiça portuguesa, não está interessado nos procedimentos que distinguem a verdadeira justiça democrática de uma justiça de tabloide. Nada disso. Para quê cumprir a lei se ele sabe a verdade? O processo é dele, foi ele que condenou Sócrates e ai de quem ponha em causa a sentença que ele lavrou no seu tribunal particular. A lei é ele que a faz..E, claro, não pode faltar o aviso do costume para os teorizadores de conspirações e colunistas-retális. Apesar de - depois de ler a acusação e após a admissão pelo primeiro-ministro de factos que reputo de gravíssimos - eu pensar que estamos perante uma forte possibilidade de terem sido cometidos crimes sérios, é preciso lembrar que os acusados são inocentes até à condenação e que mantêm intactos os seus direitos. É imprescindível que todo processo - como qualquer outro, diga-se - seja absolutamente transparente e respeitador das leis - não, não há garantismos nem meios garantismos, há a lei. As acusações são suficientemente graves para que seja essencial que não restem dúvidas a ninguém da culpabilidade ou da inocência dos acusados. Está em causa, não custa repetir, a possibilidade de termos tido um primeiro-ministro corrupto..Já houve demasiadas falhas, já vimos demasiados julgamentos populares, já assistimos a demasiadas violações do segredo de justiça, de vídeos de interrogatórios sempre com o mesmo objetivo e com a mesma versão..Este processo não podia levantar qualquer tipo de dúvida no que respeita à sua condução, mas Carlos Alexandre tem feito os possíveis e os impossíveis para que as suspeitas de que não foi imparcial, de que tem preconceitos contra os arguidos, de que quer uma condenação a todo o custo sejam legítimas. No fundo, o juiz tem feito tudo para que, qualquer que seja, a sentença deixe os cidadãos cheios de dúvidas..Se o objetivo de José Sócrates era criar confusão para que possa alimentar a tese da cabala, não podia ter arranjado melhor aliado do que Carlos Alexandre..Porém, os danos causados por esta conduta de Carlos Alexandre vão muito para além do processo em questão. A insinuação de que há truques praticados pela própria Justiça para favorecer um arguido põe em causa todo o edifício judicial. Mas não só. Dão força às teses populistas das oligarquias contra o povo, de que tudo está controlado por uma elite corrupta e que manda em tudo e mais alguma coisa. O que o juiz faz, consciente ou inconscientemente, é atentar contra o próprio Estado de direito..Em setembro de 2016, depois da entrevista à SIC do mesmo Carlos Alexandre, escrevi neste jornal: "A entrevista de Carlos Alexandre lembra-nos que é sempre possível cair mais fundo." A entrevista que Carlos Alexandre deu agora à RTP prova que sim, é possível cair sempre mais fundo..Porque é que os jornalistas não questionaram Joana Marques Vidal sobre as violações ao segredo de Justiça?.A entrevista de Joana Marques Vidal ao Expresso não teve grandes novidades. Também não era suposto, diga-se. Mal estávamos se a ex-procuradora-geral da República saísse do recato próprio das tarefas que exerceu - infelizmente, já aconteceu com outros procuradores no passado..Não vale a pena discorrer pela enésima vez sobre o que correu bem no seu mandato. Há um amplo consenso sobre o seu bom desempenho..Mas nem tudo foram rosas. As flagrantes violações ao segredo de justiça sucederam-se. Peças processuais cirurgicamente divulgadas para criar julgamentos populares sumários presididos por tabloides e divulgação de interrogatórios a arguidos poucas horas depois de terem sido feitos trouxeram uma pressão terrível sobre a justiça - como bem salientou o Presidente da República no discurso de boas-vindas à nova procuradora..Estranhamente, sendo uma matéria que tem gerado um amplo debate nacional, os jornalistas que entrevistaram Joana Marques Vidal não lhe colocaram uma única pergunta sobre o assunto. Não acham o tema relevante? Esqueceram-se? Ou foram simplesmente corporativistas e não quiseram, no fundo, pôr em causa colegas que fazem mister de serem cúmplices deste crime?.Para não dizerem que não falei de flores.Na próxima sexta-feira, o Fausto vai dar um concerto em Lisboa. Um concerto dele é sempre um acontecimento especial, mas este promete ser ainda mais especial. Ele e os seus músicos vão revisitar a extraordinária trilogia composta por Por Este Rio acima, Crónicas da Terra Ardente e Em Busca das Montanhas Azuis. Três discos que têm por tema a diáspora portuguesa e que são dos mais importantes da nossa música popular..O Fausto é um compositor e um músico genial, um perfeccionista da escrita e da música. Não é em vão que os seus concertos são raros. Não há detalhe que não seja alvo do mais extremado cuidado, não há música que não apareça enriquecida. Um concerto dele é sempre algo de único e que permanece na memória durante muito tempo. É como viver um sonho acordado.