O duplo uso nas Forças Armadas: o caso da Marinha portuguesa

Estes meses de pandemia trouxeram múltiplos novos desafios às Forças Armadas. Desafios imponderáveis, porque não se podia imaginar os contornos exatos daquilo que nos trouxe o ano de 2020. Contudo, por maior que fosse o grau de imprevisibilidade da covid-19, não seria inconcebível que Portugal (ou, neste caso, o mundo inteiro) sofresse uma emergência civil de algum tipo, e para isso as Forças Armadas estão permanentemente atentas e preparadas. O duplo uso - civil e militar - das Forças Armadas representa assim uma forma de darmos eficácia à resposta pública a crises civis e eficiência ao necessário investimento nos nossos meios de defesa. É um serviço público que se manifesta de formas diferentes consoante as necessidades.

Como sempre, entram aqui em jogo duas componentes: os meios humanos e os equipamentos. Comecemos pelo mais importante ativo para o duplo uso das Forças Armadas: os meios humanos. Treinados, organizados e preparados para o mais complexo dos cenários, que é a guerra, os militares facilmente se adaptam a outros cenários de atuação, como por exemplo catástrofes naturais ou outras emergências, de forma sempre devidamente enquadrada.

É nesse enquadramento que reside uma outra capacidade de duplo uso comum aos três ramos das Forças Armadas: o comando e controlo. Capazes de planear para a resolução de problemas complexos, as Forças Armadas desenvolveram processos de raciocínio padronizados que aceleram as respostas aos problemas que lhes são colocados, fazendo uso de equipamentos de comunicações e sistemas de informação adaptados de cenários de guerra, e que por essa razão são altamente resilientes.

Quando se aprovou em 2019 a Lei de Programação Militar (LPM), com a mais ampla maioria parlamentar de sempre, consagrou-se o princípio de procurar, sempre que possível, equipamentos com potencial de duplo uso, militar e civil. Deste modo, a par do compromisso com a utilização da LPM para o investimento na economia nacional, assegura-se que os indispensáveis meios militares sirvam para numerosos objetivos de natureza civil. Importa referir que os navios da Marinha são concebidos, desde o início, com o objetivo de potenciar uma utilização dual, possibilitando respostas militares e não militares, alargando, assim, o respetivo leque de opções de emprego.

O quotidiano das nossas Forças Armadas passa, desde há muito, pelo apoio a outras instituições. No mar, próximo e mais longínquo, a Marinha, para além das suas missões militares, patrulha os espaços marítimos e executa anualmente inúmeras missões de busca e salvamento, em estreita colaboração com a Força Aérea. Está sempre atenta a questões de natureza ambiental ou criminal, desde derrames de combustíveis à pesca ilegal ou ao tráfico de estupefacientes. A Marinha dispõe ainda de uma impressionante tecnologia embarcada nos seus submarinos que permite uma grande capacidade de conhecimento situacional em espaços muito amplos, o que naturalmente amplia o seu campo de intervenção, não se limitando apenas a questões de natureza militar. O trabalho hidrográfico da Marinha é igualmente polivalente e representa um ativo nacional de enorme valor económico para o país.

O exercício da autoridade do Estado no mar exige que as capacidades do Estado sejam devidamente articuladas, entre si e entre instituições, algo que acontece com grande regularidade e naturalidade. A título de exemplo, a coordenação com a Polícia Judiciária é necessariamente discreta, mas intensa e profícua: desde 2018 a Marinha desenvolveu 18 ações no mar com a PJ, que resultaram na apreensão de mais de 16 toneladas de haxixe e de cocaína, com um valor de mercado de várias centenas de milhões de euros.

Convém notar que o duplo uso dos meios da Marinha é fortemente potenciado pela interoperabilidade dos meios e pela coordenação operacional e estratégica que existe através da cadeia de comando. Ou seja, não é apenas a existência de um determinado equipamento, que pode ser utilizado para fins não militares, que dá relevância de duplo uso às Forças Armadas. Essa relevância resulta sobretudo da aplicação desses equipamentos num quadro em que estão relacionados com outros meios, e em que há um comando coerente, dotado de uma doutrina clara em termos estratégicos e operacionais.

Subjacente ao duplo uso dos meios estão diversas sinergias. Na formação dos recursos humanos, por exemplo, o mais importante dos recursos das Forças Armadas. E naturalmente também em toda a cadeia logística, incluindo nos processos de aquisição e construção, na manutenção e no abastecimento. Destas sinergias resultam diversas economias de escala e alicerces profundos, estabelecidos ao longo de muitos anos.

Exemplo paradigmático da importância do duplo uso e das sinergias por este permitidas é a Autoridade Marítima. A utilização dos recursos humanos e materiais da Marinha por esta Autoridade permite-lhe aproveitar sinergias, que na sua raiz têm o princípio do duplo uso. Sabendo que as Marinhas não se improvisam, os séculos de experiência e sabedoria acumulada da Marinha oferecem confiança e criam as condições para que a autoridade do Estado português se possa exercer em todos os espaços marítimos nacionais (quando apropriado, em conjugação com a Força Aérea e com outras entidades do Estado em função da matéria) e também no alto-mar.

Neste momento está em curso um importante processo de reforço das capacidades da Marinha, nomeadamente com a aquisição de seis navios patrulha oceânicos (NPOs) conforme previsto na Lei de Programação Militar. Estes seis NPOs, que se juntarão aos quatro que nesta última década saíram dos estaleiros de Viana do Castelo, darão ao país uma capacidade para defender e promover os seus múltiplos interesses no mar, combinando valências militares e não militares. Simultaneamente, este projeto permitirá ainda potenciar a inovação e o desenvolvimento, sem os quais não é possível aproveitar todas as potencialidades que o mar nos oferece.

É sem dúvida dispendioso ter uma Marinha, mas através da sua adequação para missões tanto de caráter militar como não militar tira-se pleno proveito das suas capacidades e transforma-se todos os anos o investimento em retorno para o país.

Ministro da Defesa Nacional

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