O regresso do bloco americano
Em vésperas da sua primeira viagem presidencial ao estrangeiro, em junho do ano passado, Joe Biden publicou no Washington Post um artigo cujo título era "A minha viagem à Europa é sobre a América agregar as democracias do mundo". E no programa estava um encontro com Boris Johnson, espécie de reafirmação da tal ligação muito especial com a Grã-Bretanha, a participação na reunião do G-7 (onde, além dos Estados Unidos e dos grandes da Europa, se incluem o Canadá e o Japão), depois uma cimeira da NATO e ainda conversações com a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen.
Esta semana, Biden regressa à Europa e num momento em que o continente é palco de uma guerra no seu flanco oriental, a Ucrânia. O presidente americano volta a reunir-se com os aliados da NATO, cujo sentido de unidade na atual crise com a Rússia deve muito à visita de 2021, também com o G-7 e a UE, participando num Conselho Europeu, mas no fim de tudo, obviamente, não está previsto um encontro com o homólogo russo, como aconteceu em junho passado. Aliás, não sendo impossível, custa a perceber como voltarão Biden e Vladimir Putin a sentar-se juntos depois de as tropas russas terem invadido a Ucrânia e o presidente americano ter chamado "criminoso de guerra" ao senhor do Kremlin, saudoso do poderio da União Soviética, extinta em 1991.
Muito mais cuidadoso com o preservar das tradicionais alianças dos Estados Unidos do que foi Donald Trump, Biden, por causa dos acontecimentos na Ucrânia, parece também ter recolocado o foco na Europa, em vez de no Indo-Pacífico, o que contraria não só a política do antecessor como a do próprio Barack Obama, de quem foi vice-presidente oito anos. Mas se olharmos bem para o campo chamado democrático que a América de Biden quer agregar e liderar, o polo europeu é essencial - basta notar que na votação na Assembleia Geral das Nações Unidas que condenou a intervenção russa na Ucrânia, dos 141 países que apontaram o dedo a Putin, o bloco mais coerente foi o europeu (quase unânime), ao qual se somou a Oceânia, o grosso das Américas, boa parte do Sudeste Asiático e a dupla Japão-Coreia do Sul.
Se entendermos este choque entre o Ocidente e a Rússia, por muito perigoso que seja, como secundário em relação a um futuro embate entre os Estados Unidos e a China pela supremacia mundial, e caso também seja esse o pensamento de Biden, então a visita à Europa tem um duplo objetivo: enviar uma mensagem de unidade transatlântica à Rússia, que já a sente sob a forma de sanções económicas, e de mostrar à China que há um bloco coeso que na hora H estará com a América se Washington e Pequim se enfrentarem. A esse bloco transatlântico os Estados Unidos sabem que podem juntar claramente o Japão e a Austrália, mas terão ficado com algumas dúvidas sobre outros países. Por exemplo, da centena de países convidados para a Cimeira da Democracia, organizada em Washington em dezembro, várias foram agora as exceções na condenação da Rússia, com destaque para a Índia, o Paquistão e a África do Sul, abstencionistas.
Há dias, por videoconferência, Biden conversou com Xi Jinping sobre a crise global gerada pela guerra na Ucrânia e o aceno simpático de mãos inicial entre os presidentes americano e chinês permite pensar que a rivalidade não impede o respeito mútuo. Mas não tenhamos dúvidas: a relação entre Washington e Pequim, já pejada de tensões, que vão da disputa comercial ao estatuto de Taiwan, será fortemente condicionada pela forma como a China reagir à crise ucraniana.
Um papel de mediador por parte de Xi obrigará Biden a manter cautela, mesmo percebendo que a posição da China como grande potência sairá reforçada; mas se Xi optar por ir em socorro de Putin, não militarmente, mas ajudando-o a minimizar o impacto das sanções ocidentais, então podemos estar certos de que o tal esforço de agregação das democracias em torno da América terá um destinatário estratégico e as escolhas para os parceiros, sobretudo europeus, vão ser bem difíceis, pois pertencer ao bloco americano, tal como acontecia no tempo da Guerra Fria com os soviéticos, não se limitará a um aumento do orçamento de defesa.
Diretor adjunto do Diário de Notícias