O nuclear britânico

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O anúncio do reforço do arsenal nuclear britânico é um sinal das ambições do Reino Unido, com Boris Johnson a querer afirmar o poderio tecnológico do país depois da saída da UE e ao mesmo tempo mostrar que não pretende apoiar-se em demasia no aliado especial que dá pelo nome de EUA. Mais do que o efeito prático de passar de um objetivo de redução para 180 ogivas (definido em 2010) para um objetivo de incremento para 260 a partir das 195 atuais, a decisão do primeiro-ministro mostra uma determinação de o Reino Unido depender sobretudo de si, que tem raízes na experiência histórica do país e não tão longínqua assim.

Durante a Segunda Guerra Mundial, no momento dramático em que a França estava já derrotada, a URSS ainda pactuava com a Alemanha e os EUA hesitavam em voltar a combater na Europa, o Reino Unido, sozinho frente ao nazismo, investiu num programa atómico nacional. Depois, já com os americanos no conflito, os cientistas britânicos integraram o Projeto Manhattan, contribuindo para a construção das bombas que não chegaram a ser necessárias para derrotar Adolf Hitler, mas serviram para forçar, em agosto de 1945, o Japão à rendição.

Contra as expectativas dos britânicos, no imediato pós-guerra os EUA decidiram reservar o monopólio nuclear para si. Não durou muito, pois em 1949 a URSS passou a ter a bomba. E em 1952, culminando um programa nacional relançado em 1947, o Reino Unido dotou-se também de meios nucleares. Não é coincidência que o trabalhista Clement Attlee tenha sido o primeiro-ministro que ordenou a construção da bomba e que o conservador Winston Churchill, regressado ao poder, tenha sido o primeiro-ministro que anunciou ao mundo a posse da nova arma. Estes dois políticos sabiam bem o que tinha sido liderar nos piores tempos dos bombardeamentos alemães, quando nem ser uma ilha parecia servir de proteção.

Johnson, também conservador, não só escreveu um livro sobre Churchill como o toma como modelo, e até existem pontos em comum entre o conturbado mundo da primeira metade do século XX e o de hoje, e um deles são os desafios à ordem internacional, pelo menos à que parecia fixada há 30 anos, quando a URSS se desagregou.

Identificando a China, a Rússia pós-soviética e o terrorismo como ameaças, embora usando palavras diferentes para descrever os riscos associados a chineses e russos, a diplomacia britânica não deixa também de relembrar que continua firme na NATO, ao lado dos EUA, e que na Aliança Atlântica o país se destaca como o membro europeu que mais investe em defesa. Mas fica evidente igualmente que o Atlântico não é o único oceano onde o Reino Unido quer ter uma palavra a dizer, com Índia, Austrália e Japão e os países da ASEAN (o chamado Indo-Pacífico) a serem estratégicos. Mantém-se assim fiel à vocação de potência marítima, e não é por acaso que a sua dissuasão nuclear assenta nos submarinos Trident.

Com americanos e russos a manterem cada um mais de cinco mil ogivas (e a China 320), não nos deixemos levar pela ideia de um risco aumentado de guerra nuclear por causa da decisão britânica, embora esta surja em contraciclo com o rumo pós-Guerra Fria. Mais importante é a mensagem de autoconfiança de Londres, que estará a ser interpretada em Washington como em Bruxelas, em Pequim como em Moscovo. Também em Lisboa, à luz da relação histórica entre Portugal e o Reino Unido, convém saber tirar as conclusões certas da nova estratégia do nosso tradicional aliado.

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