Veio dos clássicos, como todos sabem, que mais não seja por rápido olhar na Wikipédia. Os gregos Xenofonte e Ésquilo referem o episódio da flecha fatal que vara o tendão do herói, e Homero, na Ilíada, e o romano Virgílio, na Eneida, também falam de Aquiles. Camões cita-o, desaconselhando os portugueses de o achar superior, no último verso de Os Lusíadas: "Sem à dita de Aquiles ter inveja!"... Mete deuses, mitos e lendas, e surge em plena guerra de Troia. De facto, não há que invejar Aquiles porque o seu calcanhar traiu-o. Mas da frase feita, "calcanhar de Aquiles", há que dizer que não foi feita com os pés..Antes de chegar ao desfecho, voltemos ao recém-nascido Aquiles, filho de um rei e de uma ninfa. A sua mãe, Tétis, levou-o ao que então era possível conhecer do Reino dos Mortos e mergulhou o catraio no rio Estige, cujas águas tornavam os corpos invulneráveis. Tétis prudentemente segurou Aquiles por um tornozelo, cuidado que, por ironia, deixaria uma pequena parte do herói sem proteção. Quando Helena, rainha de Esparta, foi raptada por Páris, príncipe de Troia, os gregos uniram-se para lavarem-se da afronta. Já adulto, Aquiles foi com eles cercar Troia e mostrou quanto era guerreiro, veloz, feroz, poderoso e imbatível - é o que conta Homero do maior dos heróis. Até que, talvez Páris (mas há outras versões), lhe flecharam a sua única debilidade. O ponto fraco escondido no esplendor das suas virtudes. E Aquiles, por causa do calcanhar ferido, foi para o Reino dos Mortos..Os de Troia também tinham os seus calcanhares de Aquiles. Páris, por exemplo, o da paixão, que o fez raptar uma rainha alheia, Helena, e provocar os gregos, mais poderosos. A própria cidade também tinha o calcanhar de Aquiles da ingenuidade, o que a levou a abrir as suas portas para aceitar como oferta de paz um enorme cavalo de madeira, cheio de escondidos guerreiros gregos... Mas nenhum desses calcanhares de Aquiles foi imagem tão explícita, direta ao assunto e eficaz como o calcanhar de Aquiles que atingiu o calcanhar de Aquiles. Há ideias assim, poderosas como a substantivação de algumas marcas: uma fotocópia, que será sempre uma xerox, mesmo quando a máquina que a fez não é da Xerox, ou como a qualquer frigidaire em Luanda chamar-se-á isso, frigidaire, mesmo se produzido pela Siemens ou pela Bosch..Insisto, ainda: a origem da expressão é clássica, grega. Portanto, fundamente pensada. A civilização do pensamento e da exaltação do corpo, quando criava um mito, pensava-o todinho. Quando glorificaram uma lenda e a essa ideia emprestaram para protagonizar uma parte traseira e rasteira do corpo humano - o humilde calcanhar que sustentava um tendão - estavam a demonstrar a importância que realmente davam a quem inventou a maratona e os ginásios. Aparentemente, um calcanhar não merecia tamanha lenda. Mas isso é desconhecer quanto as mitologias estavam ao serviço de uma moral e quanto esta respeitava a força das pequenas coisas..O tendão de Aquiles, ou tendão calcâneo, não é pouca coisa. É o tecido fibroso mais poderoso do corpo humano, guarda a energia quando o pé pousa e propulsa com a violência que conhecemos dos saltos em altura dos atletas e nos chutos de Cristiano Ronaldo. Pode suportar uma carga de 400 quilos. Quem diria? Com tanta exatidão, diria o leitor, talvez não os gregos antigos. Pois com a finura dos sábios, foi o que eles disseram exatamente. Criar uma lenda com a garantia de ela perdurar milénios faria supor que Xenofonte e Ésquilo deveriam ter escolhido órgãos humanos mais nobres, por exemplo, o coração ou o cérebro. Leitores de pouca fé! A força do mito está exatamente na escolha do humilde calcanhar quando, na realidade, ele tem um papel fundamental no homem de pé, no homem que corre e salta. Quando um tendão de Aquiles parte, faz um estrondo que já levou muito atleta a pôr as mãos à cabeça pelo azar do colega que jogava ou treinava ao seu lado. Ao atingido não chegam unguentos e panaceias - ficará imobilizado por muito tempo..A genialidade do mito começa por criar a ilusão da invencibilidade, depois imitada pelo inventor do Super-Homem, e a sua kryptonite, e do Obélix, e o seu mergulho na poção mágica. Uma arte menor, a banda desenhada, mais uma vez prestava culto aos clássicos. Depois, a lenda desmonta essa ilusão, fazendo-nos cair do Olimpo e de volta à Terra. O sucesso e o perdurar milenário da imagem "calcanhar de Aquiles" explicam-se por terem começado terra-a-terra, o que nos levou a sonhar sermos semideuses: só o respeito por pelo menos alguns factos sustenta a nossa crença nas lendas..E foi assim que chegámos a um Fernando Mamede (décadas de 1970 e 1980), maravilhoso deus das grandes distâncias do atletismo, cinco mil e dez mil metros, recordista mundial desta última distância, numa marca que durou cinco anos. Recorde conseguido em corrida sem pódios olímpicos ou medalhas mundiais ou europeias. Ambos, pódios e medalhas, eram o calcanhar de Aquiles de Mamede. Calcanhar que não era para ser tratado por podólogo, doutor de pés, mas por psicanalistas. Nos tempos modernos já podemos explicar os nosso problemas por mais alto que os tornozelo..Calcanhar de Aquiles podemos também dizer que tem Lionel Messi, que nasceu bendito para o futebol, jogo de pés, apesar de ser irremediavelmente coxo: o seu pé direito não alinharia nem em jogos de solteiros contra casados, só serve de muleta. Que fez ele com essa insuficiência? Venceu-a. Devendo jogar como atacante à esquerda, para melhor se aproximar da baliza, insistiu jogar quase sempre à direita, seu lado cego, para aprimorar ainda mais a sua bênção, um divino pé esquerdo com a inteligência do voo das moscas. Homero, se o conhecesse, haveria de o tratar como herói olímpico que é. Calcanhar de Aquiles tem Donald Trump quando usa as suas palavras. Que faz Trump? Usa-as. Há destinos assim, está escrito desde os tempos de antigamente.