Pacheco Pereira: "Cunhal e Fidel quebraram o isolamento dos soviéticos" em 1968

Na madrugada desta segunda para terça-feira cumpriram-se 50 anos sobre o esmagamento da Primavera de Praga. Por cá, o PCP apanhou com alguns estilhaços. Pacheco Pereira e Carlos Brito recordam a reviravolta de Cunhal.
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Na noite de 20 para 21 de agosto de 1968, tanques soviéticos e milhares de soldados dos países do Pacto de Varsóvia entraram na capital da Checoslováquia, pondo fim à Primavera de Praga. Há precisamente 50 anos, o movimento de reformas no país submetido à União Soviética, levado a cabo por Alexander Dubcek, era esmagado - 72 pessoas morreram e mais de 700 ficaram feridas. Por terra caíram também as esperanças no "comunismo com rosto humano" de alguns dirigentes do Partido Comunista Português, nomeadamente das células instaladas na Checoslováquia - que participou nas manifestações a favor do fim da hegemonia comunista -, na Suíça e na França.

Os estilhaços da Primavera de Praga fizeram sentir-se em Lisboa e atingiram Cunhal pela defesa que fez da União Soviética e que constituíram uma surpresa face às posições que tinha tomado até então. "Muito antes da invasão havia uma simpatia genuína de Cunhal em relação a Dubcek. O Avante! publicou vários artigos que podem ter passado pelas mãos de Cunhal - alguns, pelo estilo, podem ser do próprio Cunhal - que são bastante simpáticos e elogiosos para a Checoslováquia. "São artigos do mais aberto sobre o que se estava lá a passar até ao momento em que a União Soviética decidiu invadir o país. A partir daí, os comunistas portugueses são mais papistas do que o Papa", afirma Pacheco Pereira, autor de uma completa biografia do dirigente histórico do PCP.

Pacheco Pereira não tem dúvidas em afirmar: "Há um isolamento grande dos soviéticos e quem quebra esse isolamento é o Partido Comunista Português e o Partido Comunista Cubano." Pelas vozes de Álvaro Cunhal e de Fidel Castro, "dois casos de reviravolta completa".

O historiador considera que a reviravolta mais importante é a de Cunhal. "Muitos partidos comunistas resistiram em apoiar a invasão soviética - o francês, o italiano, o espanhol... Mesmo pequenos partidos muito dependentes dos soviéticos criticam a invasão, como foi o caso do austríaco."

A "soberania limitada"

Carlos Brito estava na clandestinidade, numa casa em Lisboa, quando os tanques soviéticos invadiram Praga. Lembra-se de que logo nessa altura sentiu um grande incómodo por ver que as reformas que estavam a ser levadas a cabo na Checoslováquia foram travadas. "Podia ter sido tudo diferente", diz o histórico dissidente comunista. "Dentro do partido houve resistência em aceitar a invasão soviética mas fomos sendo convencidos dos riscos que a revolução checoslovaca podia representar e venceu a doutrina Brejnev."

Um dos riscos acenados que ajudaram a que se convencesse a aceitar o golpe soviético foi o perigo de um conflito europeu, resultante de uma resposta da União Soviética a um hipotético domínio do imperialismo. Estava clandestino quando ouviu na Rádio Moscovo e na Rádio Portugal Livre que os tanques tinham entrado em Praga. "Percebi que iam aumentar as dificuldades, mas acabei por ser convencido pela importância da 'soberania limitada'", a doutrina de Brejnev.

Tal como Pacheco Pereira, Carlos Brito recorda a ida de Álvaro Cunhal à Checoslováquia para tentar acalmar a célula comunista portuguesa naquele país, ou, nas palavras do historiador, "pô-los na ordem". Mas o líder não foi bem-sucedido. "Cunhal não conseguiu acalmá-los, estavam indignadíssimos com a evolução da posição do PCP", lembra Brito.

Flausino Torres acabou por ser o rosto dessa indignação e acaba por bater com a porta. Pacheco Pereira recorda mesmo que chegou a pedir que fosse instaurado um processo disciplinar a Cunhal. Que, obviamente, não avançou. Álvaro Bandarra foi outro dos dissidentes.

A indignação dos comunistas portugueses estendeu-se a outras células, nomeadamente à suíça e à francesa, com as dissidências de António Barreto, Octávio Cunha e Eurico de Figueiredo (em Genebra) e Carlos Antunes (em Paris).

"Cunhal mentiu-lhes. Já tinha tomado posição apoiando a União Soviética, mas como foi ao encontro dos comunistas que estavam em Praga ocultou esse facto e criou uma situação de muito mal-estar, com uma reunião muito violenta com Flausino Torres", sublinha Pacheco.

Dentro do PCP há algum incómodo, há quem aceite muito a custo a "soberania limitada", garante Carlos Brito. Mas os ânimos acabaram por se pacificar, diz, porque o documento que o Comité Central viria a aprovar se distanciava ligeiramente do da comissão política, admitindo a necessidade das reformas mas considerando que não correram bem e representavam riscos.

Se por um lado os acontecimentos de Praga não afetam a estrutura, não deixam contudo de ter um impacto direto na esquerdização que se passava nas universidades e em certos setores operários como a TAP ou os têxteis, onde havia um conjunto de dirigentes mais novos que combatiam a hegemonia do partido comunista no movimento sindical. E, sublinha Pacheco Pereira, tiveram um papel importante na origem da Intersindical.

Revolução de Veludo

Com a chegada de Alexander Dubcek ao governo checoslovaco, em janeiro de 1968, deu-se início a uma série de reformas cujo objetivo era "desestalinizar" o país. E que passavam nomeadamente por diminuir as restrições à liberdade de expressão e de imprensa e pela descentralização parcial da economia. Os soviéticos decidiram travar os ventos de mudança com tanques e soldados.

Gustav Husak, no poder depois de travada a Primavera de Praga, manteve-se fiel à linha dura comunista, contra o que defendia Mikhail Gorbachev. Em dezembro de 1989, na sequência dos acontecimentos após a queda do Muro de Berlim, caía também o governo comunista da Checoslováquia. Uma revolução com um nome suave, Revolução de Veludo.

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