"Alguém tão exigente como Vasco Pulido Valente não diria que Cunhal mandaria matar Soares sem ter essa certeza"

Foram mais de 40 entrevistas ao longo de ano e meio ao colunista português mais "sem papas na línguas", na definição feita pelo próprio João Céu e Silva, autor de um novo livro sobre o pensamento de Pulido Valente (falecido em 2020) e grande repórter do DN, o que explica esta conversa usar o "tu".

Logo na introdução, dás conta da grande frustração de Pulido Valente com a morte de Sá Carneiro, em 1980. Das longas conversas que tiveste, das entrevistas que fizeste, ficou a ideia de que o fundador do PSD foi o político português que Pulido Valente mais admirou?
Sá Carneiro foi marcante para Vasco Pulido Valente porque lhe abriu a porta para se imaginar como ideólogo de uma direita que queria fundar em Portugal no seguimento do processo revolucionário pós-25 de Abril. Conheciam-se, mas não se apreciavam, situação que se alterou radicalmente num jantar em que estavam em mesas separadas e acabaram por se juntar e conversar. Daí nasceu uma das alianças mais fortes da política portuguesa, a da Aliança Democrática, e a possibilidade de estruturar uma ideologia fora do âmbito da esquerda e dos militares, e uma colaboração política íntima entre ambos.

Existem também palavras elogiosas, mais adiante no livro, sobre Mário Soares. Como sintetizas a opinião que o entrevistado tinha do líder histórico do PS, o homem que foi tudo na democracia, incluindo primeiro-ministro e Presidente da República?
Mário Soares foi o único protagonista que ele verdadeiramente respeitou e considerou ter o estofo de estadista para contrariar as derivas esquerdistas e do PCP, bem como de Ramalho Eanes e de outros militares. Não era por acaso que, apesar das desavenças futuras entre ambos, mantinha uma fotografia autografada por Soares à distância do olhar, tal como uma outra em que está com Sá Carneiro. Mas a este não lhe concedia o estatuto político que deu a Soares, tanto que me disse que enquanto Soares estava à frente dos destinos de Portugal dormia descansado.

Quem o desiludiu mais: Sá Carneiro ou Mário Soares?
Sem dúvida Sá Carneiro. O maior drama da vida de Vasco Pulido Valente foi, como fez questão de dizer, "ter a vida cortada ao meio" devido à morte do líder do PSD, numa tragédia que define como acidente e não atentado e resume em poucas mas duras palavras: "A idiotice de Sá Carneiro em deixar-se morrer." Um acidente em que, entre outras vítimas, está Snu Abecassis, uma relação que o desiludiu também por ter afetado a vida política de Sá Carneiro de uma forma inaceitável num tempo em que "já ninguém se importava se andavam a dormir um com o outro, a não ser ele e a Igreja. Quanto a Soares, só reclama que lhe tenha cortado certas ambições, mas não quer dar importância a esses pormenores numa figura que considera o responsável por haver democracia em Portugal.

Quando se lê aquilo que Pulido Valente vai dizendo, no seu habitual estilo entre a ironia e o cinismo, por vezes surgem afirmações bombásticas, como a de que Álvaro Cunhal teria chegado a pensar em mandar matar Soares. Como historiador de formação, tinha bases para avançar com este tipo de revelações?
Essa afirmação foi uma das maiores surpresas entre cem horas de conversas, que me obrigou a cerrar o "interrogatório" de modo a esclarecer a questão, indo ele até ao limite do que poderia revelar. Alguém tão exigente como Vasco Pulido Valente não diria que Cunhal mandaria matar Soares sem ter essa certeza. Tinha a forte crença de que Cunhal, caso fosse um vencedor político, seria capaz de querer riscar Soares dos rivais; o envolvimento político que Pulido Valente viveu à época e o facto de ter seguido Cunhal de perto enquanto jornalista não admitem que tenha dito isto de ânimo leve.

Houve outras afirmações graves?
Sim, designadamente no que respeita à corrupção que se afirmou nas últimas décadas e que o preocupava bastante. Considerava que "os grandes negócios se tramaram na altura do governo de Cavaco, mas é no governo de António Guterres que explode, e começam a organizar-se calmamente", porque este não tinha pulso na corte à sua volta e aproveitava-se da sua incapacidade de tomar decisões. Pulido Valente, contudo, acreditou que Cavaco poderia eliminar a corrupção quando foi para Belém, e como o não fez, ficou desiludido de tal forma que se tornou um feroz crítico de Cavaco enquanto primeiro-ministro e Presidente da República. Nunca perdoou a Cavaco, aliás.

Temos até agora falado de políticos do pós-25 de Abril. Que balanço fez Pulido Valente da democracia nascida da revolução de 1974?
Ele trata os militares como "os capitães golpistas de Abril" e considera que a revolução é "fraudulenta" porque foi inventada a posteriori por gente que não tinha uma ideologia e que, ao perceberem a gravidade e o alcance do pronunciamento militar que fizeram, optaram por eliminar a sociedade portuguesa tradicional de modo a não sofrerem represálias. Nas suas palavras: "Para não pagarem o preço, porque não se entrega assim um império e a descolonização deveria ter sido feita com alguma autoridade. O Exército entregou-se e comunicou ao inimigo que não estava mais disposto a lutar." Despreza de Otelo a Spínola, o Conselho da Revolução e depois a maioria dos "politicotes" que têm governado Portugal. O seu respeito é muito pouco por quem perdeu a oportunidade de pôr o país no melhor caminho e errar continuadamente apesar das lições da história que frequentemente fazia questão de recordar aos leitores.

Como olhava ele para o salazarismo, sobretudo para Salazar?
Foi outra surpresa ouvi-lo dizer que "Salazar era a pessoa mais horrível de Portugal" e que, ao contrário do que se costuma dizer, não era um estadista de "proporções intelectuais extraordinárias", mesmo que tenha governado Portugal durante tanto tempo, além de que faz prova do quanto Salazar "mentiu para construir a sua lenda". Pulido Valente nunca escreveu muito sobre Salazar, creio que foi a única vez em que fez questão de deixar um depoimento de dezenas de páginas por forma a esclarecer o mito Salazar.

Foram mais de 40 entrevistas para este livro, a um pensador que leste durante muitos anos, em livros e em colunas de jornais, incluindo as do DN. Descobriste uma pessoa diferente daquela que imaginavas?
E de que maneira! Ao longo de entrevistas anteriores tinha-me confrontado com o Pulido Valente conhecido de todos, aquele que se levantou antes de a entrevista terminar e me deixou a falar sozinho sem sequer se despedir. No entanto, se estas entrevistas feitas às segundas-feiras durante ano e meio mostravam também esse mesmo homem, conforme o tempo passava, fez questão de esbater o lado do cronista irascível e tornar-se um conversador que admitia ir até certo ponto de alguma da intimidade que sempre resguardou, contar piadas e, de gravador desligado, comentar assuntos que o divertiam ou que eram boas memórias pessoais. Não esperei nunca vê-lo rir-se com vontade como aconteceu várias vezes.

Qual foi a maior frustração que ele contou nessas conversas a dois?
Não poder escrever uma biografia de Hitler por não ser leitor de alemão foi uma das maiores... Outra principal frustração foi a de se ter perdido no jornalismo e falhar a hipótese de escrever uma História de Portugal que abrangesse o século XIX e fosse até às primeiras décadas do século XX. Na minha opinião, e a investigação para este livro confirmou, o historiador Vasco Pulido Valente avançou em muito nesse projeto, o que faltou foi preencher algumas lacunas na cronologia e reunir todo o trabalho histórico de uma vida num único volume. Esquecendo o lado do historiador, o que mais o frustrava nos últimos anos era não poder fazer uma peregrinação por certos prazeres, como estar impossibilitado de ir almoçar a um restaurante no Alentejo e comer os petiscos que adorava, bem como regressar ao Gambrinus, o seu "escritório".

Pulido Valente, estando doente, acabou por confiar em ti para fazer os seus últimos ajustes de contas?
Nunca percebi que quisesse ajustar contas só porque sentia a morte aproximar-se ou por outro motivo. Aliás, essa noção de que a sua vida poderia estar por um fio só surgiu muito no final destas conversas, porque durante a maior parte desse ano e meio ainda lhe senti projetos e, isso sempre, a vontade de ajudar com os seus artigos de opinião a acender umas luzes na escuridão com que os políticos conduzem o país. Estranhei até que tivesse compreensão pelos propósitos da esquerda que fez parte da "geringonça", termo que inventou, como representantes dos anseios da classe média e que considerasse António Costa uma mais-valia no estado conturbado de greves e protestos que Portugal viveu nos últimos anos, ao mesmo tempo que fazia tábua rasa de uma direita em que deveria rever-se, mas sobre a qual só sentia desilusão. Creio que nos últimos tempos lamentou mais do que nunca o facto de a morte de Sá Carneiro ter interrompido o seu projeto ideológico de criar uma direita esclarecida para Portugal.

Tentaste que te falasse sobre alguém e ele resistiu sempre?
Se queria ouvi-lo falar depreciativamente sobre alguém, só o consegui em off, mas apenas com o objetivo de explicar os bastidores de certos acontecimentos nacionais em que se envolveu. De resto, fez comentários sobre certas pessoas em quem tinha esperança para mudar a mentalidade do país e que o desiludiram, como foi o caso de Miguel Esteves Cardoso, sobre quem tinha um misto de emoções. Negou-se a avançar sobre o parceiro deste no jornal O Independente, Paulo Portas, de quem preferiu salientar sempre a amizade. Entre os políticos das últimas décadas, o único sobre quem se recusou a fazer comentários foi Pedro Passos Coelho...

Nesta tua série de livros Uma Longa Viagem com, antes de Pulido Valente houve Álvaro Cunhal, também Manuel Alegre, José Saramago e António Lobo Antunes. Que te disse Pulido Valente destes nomes?
Ofereci-lhe os livros com José Saramago e Lobo Antunes para perceber o que eu queria fazer. O do Nobel pôs logo de lado, o de Lobo Antunes permaneceu à vista. Não apreciava a obra de nenhum deles, e comparou Saramago à arquitetura de Tomás Taveira. O único escritor que admirava incondicionalmente era Eça de Queiroz, que servia de exemplo de lucidez para muitas situações de que falava a nível da história, de resto só Camilo e em muito pouco Agustina Bessa-Luís, a quem acusava de ter escrito "livro imundo sobre Sá Carneiro".

Tens mais de três décadas de currículo jornalístico no DN, e entrevistaste muitos pesos-pesados da política, como Cunhal, Soares, Ramalho Eanes, Freitas do Amaral, Sócrates ou António Costa. Pulido Valente poderia ter dado um grande político ou estava mais talhado para lhes fazer marcação nos jornais?
Nunca teve a resistência para ser político e entrar nas grandes batalhas, tanto que essa carreira foi breve nas duas vezes que aceitou ser secretário de Estado e deputado; garantiu-me, sim, que sentia apetência por entrar em zaragatas que não eram secundárias, como as contra o militarismo e o comunismo, mesmo que se definisse a esse nível como uma "personagem secundária". Ou seja, estava talhado para lhes fazer marcação. Curiosamente, enquanto foi responsável pela pasta da Cultura, revelou que o seu sonho era ser arqueólogo... também gostaria de ter escrito ficção, e tinha um estilo muito bom como se viu no Glória.

Voltando à formação do entrevistado como historiador, aliás formado em Oxford. Sei que concordaram em abordar os dois últimos séculos de Portugal. Que achava ele da monarquia? E da Primeira República?
Era um saudosista de Oxford, mas sabedor de que não sobreviveria no ambiente inglês, nem fora de Portugal, onde a vida era mais fácil. A estrutura do livro foi desde o início fruto da intenção de perceber até que ponto a nossa história atual decorre ainda desse momento das invasões francesas e o quanto tudo o que se passou e ainda acontece tem um fio condutor muito percetível que liga 1807 até este terceiro milénio. Pelo meio estava a monarquia, o seu fim e o novo regime; uma área de estudo que o apaixonava e da qual tudo sabia ao pormenor. Infelizmente, é impossível fugir ao facto de que a ignorância geral sobre esses períodos tem evitado que Portugal supere a dificuldade em descolar da repetição de certos erros e que as réplicas se sucedam desde o terramoto político provocado por Napoleão.

A tua série de entrevistas, ao longo de ano e meio, foi interrompida pela morte de Pulido Valente em fevereiro de 2020. Qual foi o grande tema que ficou por abordar?
Felizmente, nenhum. Posso dizer que todos apostaram em que eu não iria conseguir realizar esta Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente e que, ao vê-lo a piorar no seu estado de saúde nos meses finais, receei que o livro pudesse ficar aquém do que era o meu desejo e ele merecia. Nenhuma das situações aconteceu! Pulido Valente ficou convencido quando lhe apresentei o projeto e, dias depois, acabou por aceitar todas as condições que lhe enviei por escrito e que me davam total liberdade de escrita, de edição e de condução das entrevistas. À oitava conversa fez um desabafo, que não posso revelar, que me deu a certeza de que estava disponível para deixar um testemunho como até então nunca acontecera.

leonidio.ferreira@dn.pt

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