Somente um tigre
Tigre, Tigre, viva chama
Que as florestas da noite inflama,
Que olho ou mão imortal podia
Traçar-te a horrível simetria?
William Blake, The Tyger/O Tigre, 1794
O último partiu há dias. Com 91 anos, Jimmy Cobb, o baterista, era o derradeiro representante do sexteto que, entre 2 de Março e 22 de Abril de 1959, gravou Kind of Blue, o disco de jazz mais aclamado e mais vendido de todos os tempos, sobre o qual já se escreveram dezenas e dezenas de livros e muitos milhares de artigos, todos laudatórios. Hoje, o unanimismo é tal que até irrita: em 2002, quando a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos decidiu classificar Kind of Blue como tesouro nacional norte-americano, a proposta foi aprovada por 409-0. Nem um voto contra.
No passado, infelizmente, nem todos parecem ter apreciado tão entusiasticamente o autor deste monumento cultural da América. No Verão de 1959, meses depois de ter gravado a sua opus magnum (já agora, platina quádrupla atribuída pela Associação da Indústrias Fonográficas da América), quase em simultâneo com a data histórica em que o disco mítico foi lançado - 17 de Agosto de 1959 -, Miles Davis foi barbaramente agredido em Nova Iorque, pela polícia. O músico estava à porta do lendário Birdland, a acompanhar uma amiga, caucasiana e loura, a um táxi. Um polícia aproximou-se, abordou-o no passeio, ordenou-lhe que desaparecesse dali. Miles objectou, disse que nessa noite estava a tocar no Birdland e até mostrou o cartaz à porta com o seu nome. O agente, em resposta, agarrou-o e deu-lhe uma violenta pancada no estômago com o cassetete. Enquanto isso, outro polícia mandava dispersar os transeuntes que se aproximaram de imediato do local. Um terceiro polícia, surgido entretanto em cena, mal chegou perto de Miles desferiu-lhe um violento golpe na cabeça, que num ápice abriu ferida profunda, o sangue a jorros a ensopar o asfalto. Depois, deram-lhe voz de prisão e levaram-no para a esquadra. Tiveram até o desplante de o acusar de ter agredido um agente da polícia, contra todas as provas, contra todos os testemunhos das dezenas de pessoas presentes à porta do Birdland. Só um ano depois Miles Davis foi absolvido da acusação de conduta desordeira. Teve de passar ainda mais um ano para que fosse retirada a queixa contra si por agressão à autoridade.
Mais do que uma cicatriz no crânio, o episódio deixou-lhe um fundo rasgão na alma, naturalmente, mais difícil de sarar. Nas muitas dezenas de entrevistas que concedeu nos alvores dos anos 1960, Miles regressou obsessivamente àquela noite e, na sua controversa autobiografia, publicada em 1989, disse que o incidente mudou por completo a sua vida e a sua atitude para com os outros, tornando-o novamente cínico e amargo, e logo numa altura em que, segundo ele, começava a encarar com alegria e optimismo as mudanças que ia presenciando no seu país, o país que foi capaz de produzir Miles Davis e Kind of Blue mas também polícias racistas que agrediam - e continuam a agredir - um negro na rua sem qualquer motivo, excepto um, o mais vil de todos: a cor da sua pele.
Nas fotografias na esquadra, vemo-lo de cigarro no canto da boca, com a cabeça coberta de adesivos e a camisa amarrotada, salpicada de manchas de sangue. Abraçada a ele, uma mulher puxa-o a si, parece sussurrar-lhe qualquer coisa ao ouvido ou simplesmente beija-o no rosto, talvez no pescoço. Era Frances Taylor, a escultural bailarina com quem Miles se casará poucos meses depois, em Dezembro de 1959.
Frances, que abdicou de uma promissora carreira na Broadway por imposição dele (após ter sido seleccionada no dificílimo casting de West Side Story), acabou por literalmente fugir de casa e do casamento em 1965, após vários anos de abusos, infidelidades, traições, ciúmes tresloucados e, sobretudo, agressões físicas. Na sua autobiografia, Miles não ilude o assunto e reconhece que bateu várias vezes na mulher, culpando as drogas e o álcool. Não foi, porém, o primeiro nem o último caso de abuso: anos antes, explorara mulheres, fora proxeneta para alimentar o vício da heroína. E tudo isto tem de ser dito, ou também tem de ser dito, quando lhe louvamos o génio, assombroso, e o estilo, poderosíssimo.
Tão poderosíssimo que, há um par de semanas, foi publicado um livro intitulado MilesStyle. The Fashion of Miles Davis, de Michael Stradford, um escritor e radialista da Califórnia. (Uma advertência furibunda: o exemplar que recebi tem a indicação "printed in Great Britain by Amazon" e é uma edição miserável, que mais parece um amontoado de fotocópias mal-amanhadas e, sobretudo, mal paginadas; se é isto o "futuro do livro" e a "nova tecnologia", estamos servidos.)
Mil vezes imitado, o estilo de Miles Davis é dificilmente definível. Michael Stradford tenta fazê-lo, recorre a dezenas de testemunhos e pede a todos os entrevistados que caracterizem Miles numa ou em meia dúzia de palavras. Ninguém lá chega. Uns andam perto, aos círculos, farejam a coisa, aludem ao cool e à autoconfiança, falam de uma pantera a deslizar no palco, da raiva incontida e do diabo a sete, mas todos falham o alvo. Quem consegue definir o carisma de um tigre? O segredo do estilo de Miles é mesmo esse, ser avesso a todas as definições, o cúmulo da rebeldia. Se conseguíssemos dizer o que era e em que consistia, ele tornar-se-ia tangível e alcançável, quando o estilo de Miles Davis é do domínio do transcendente, mais do que místico. E o mais espantoso é que esse estilo atravessou todas as fases da sua carreira e as mil e uma metamorfoses de um músico tão ou mais camaleónico do que David Bowie. Mais espantoso ainda, há nesse estilo uma incrível coerência, como se Miles fosse sempre o mesmo, apesar de tão radicalmente diferente ao longo dos anos.
Por muito frívolo que tal pareça aos mais intelectuais, que teimam em não perceber que o showbiz também é isto (e, às vezes, é essencialmente isto), as roupas e os adereços desempenharam um papel absolutamente crucial na construção da imagem e na própria música do trompetista, sendo, por assim dizer, uma segunda pele de Miles Davis e uma marca que permite identificar, de forma cristalina, as diversas fases de um percurso existencial e criativo que, por vezes à beira do abismo, outras em prolongadas travessias do deserto (como o hiato silencioso de 1975-1980), sempre revelou um formidável inconformismo e uma vontade insaciável de descoberta e de reinvenção.
Não é por acaso que o vestuário singularizou os músicos de jazz negros do pós-guerra, um período histórico em que lentamente se regressou à sofisticação e ao glamour de outrora, passados os tempos austeros de 1939-45, dominados por um estilo informal e prático, próximo do trajar operário. O tema já mereceu vários estudos, com destaque para uma obra de Monica Miller intitulada Slaves to Fashion. Black Dandyism and the Styling of Black Diasporic Identity, que acentua a importância do dandismo e, se quisermos, do sartorialismo na afirmação da identidade cultural afro-americana, desde os tempos da escravatura, quando leis puritanas impediram os donos dos escravos de os ataviarem de forma opulenta e ostentatória. Em resultado disso, o vestuário passou a ser uma marca dos homens livres, o sinal distintivo dos escravos libertos e, ao mesmo tempo, um modo de evocar raízes pretéritas, situadas do outro lado do Atlântico, e de singularizar a cultura negra americana com base no seu referencial africano.
O vestir bem, de forma cuidada, minuciosamente estudada, com inegáveis laivos de vaidade (como não lembrar os fantásticos sapeurs do Congo?), era também um gesto político, uma afirmação de que a cor da pele não impedia os negros de se trajarem como os brancos, e até melhor do que eles, de forma ainda mais sofisticada e elegante. O acesso a escolas, a restaurantes, a autocarros e a casas de banho poderia ser-lhes interdito, o modo de vestir não, sobretudo se ele fosse igual ao dos brancos, ou até "mais branco" do que os dos brancos. Existindo, assim, essa igualdade de vestuário e de aparência, não havia, por conseguinte, qualquer razão para que os negros não tivessem direitos idênticos aos brancos e para que não pudessem levar o mesmo estilo de vida, algo que sempre foi o mote do pai de Miles Davis, que, em 1927, não hesitou em mudar-se com a família para um bairro de St. Louis predominantemente habitado por brancos.
Aliás, W. E. B. Du Bois, um dos primeiros paladinos dos direitos dos negros, era um dos homens mais bem vestidos do Harlem do princípio do século XX e, pela mesma época, por altura dos anos 1920, o movimento cultural Harlem Renaissance caracterizou-se igualmente pelo trajar apurado dos seus protagonistas masculinos e femininos. Miles Davis, de resto, não foi o único músico afro-americano a destacar-se pela indumentária, podendo citar-se, antes ou depois dele, os nomes de Duke Ellington, Cab Calloway, Sammy Davis Jr., a maioria dos cantores da Motown, incluindo as Supremes, Jimmy Hendrix, Prince, etc., etc. (e não, por favor não falem de Michael Jackson).
O mais curioso de tudo é que, sendo Miles bem-nascido, muito mais bem-nascido do que a generalidade, senão a totalidade, dos seus colegas dos meios do jazz, chegou a ser repreendido por alguns deles pela forma provinciana e pouco sofisticada como se apresentava. Na Nova Iorque de meados dos anos 1940, Miles Davis III, o filho de um abastado e requintado dentista de St. Louis, que apreciava boas roupas e bons carros, e de uma professora de música e violinista, não era capaz de competir em estilo com os prodígios de elegância do mundo jazzístico. À excepção de dois ou três nomes (o aluado Thelonious Monk ou os viciados Charlie Parker e John Coltrane), todos os músicos negros daquela época orgulhavam-se do aprumo dos seus fatos de recorte clássico, em tons escuros, ou da pujança dos seus acessórios de ouro ou madrepérola. Era mais, muito mais, do que um gesto individual de vaidade, antes correspondendo à afirmação de uma elite e de uma vanguarda artística, segura de si e disposta a combater os preconceitos dos tempos anteriores à guerra.
Era, de igual modo, uma forma de distinguir o jazz no panorama cultural e artístico, de acentuar a sua faceta moderna e urbana, em contraste com a visão que muitos ainda tinham desse género musical e sobretudo do blues. Mesmo em finais da década de 1950 e princípios da de 1960, conta Keith Richards na sua autobiografia, muitos artistas negros americanos tiveram de enfrentar a hostilidade de plateias britânicas para as quais o blues, o jazz ou o gospel eram músicas destinadas ao entretenimento de brancos e tocadas por descendentes de escravos vestidos como campónios do Mississippi e com um ar obediente. "Para aquela gente", diz Richards, com graça, "os blues só eram blues se houvesse um gajo de suspensórios a queixar-se de que a mulher o tinha abandonado". Era justamente contra isso, contra a força desse preconceito, que os músicos de jazz do pós-guerra se ergueram, com o arrojo da sua música, mas também, ou acima de tudo, da sua atitude e da sua pose.
Faltavam ainda muitos anos para que a Esquire elegesse Miles Davis como um dos 75 homens mais bem vestidos de todos os tempos, ou que a GQ o escolhesse como o músico mais elegante de sempre. Na década de 1940, o jovem trompetista e estudante do prestigiado Institute of Musical Arts, de Nova Iorque (mais tarde conhecido como Juilliard School), sofreu o supremo vexame de ser humilhado em público pelo distintíssimo Dexter Gordon (que ademais era alto, ao contrário dele). Com uma palavra, o saxofonista arrasou os fatos largos e desajeitados de Miles, classificando-os impiedosamente como "country". O insulto calou tanto mais fundo quanto Miles admirava imenso a forma de vestir de Dexter, no que era acompanhado pela esmagadora maioria dos homens e das mulheres que se cruzavam na noite de Manhattan. E, além disso, Miles já então tinha preocupações com a aparência, não era um trapalhão como Thelonious.
Na juventude, o seu modelo de elegância fora Fred Astaire e, a partir daí, com os ordenados das primeiras actuações, Miles procurara evoluir para um estilo próprio, construído à base de fatos da marca Brooks Brothers. Dexter Gordon tentou persuadi-lo a irem juntos à F&M, uma loja em Midtown, Miles insistiu que preferia o corte dos fatos Brooks, Dexter foi implacável e disse-lhe, alto e bom som, que não concebia como é que alguém vestido daquela maneira tinha a ousadia de tocar no grupo de Bird. Miles, que, a instâncias do pai, tinha ido para Nova Iorque justamente para conhecer e tocar com Parker (e com Dizzy Gillespie), sentiu fundo aquele rude golpe, do qual se recompôs aos poucos.
Nas fotografias tiradas por volta de 1948, Miles surge com novos fatos, mais adaptados ao seu corpo. Nos lábios, um bigodinho minúsculo, não mais do que um risco, e o cabelo penteado no estilo conk, muito popular entre os negros americanos dos anos 1920 aos anos 1960, e cujo nome deriva de congolene um gel fixador e esticador do cabelo feito à base de soda cáustica (não se trata de um pormenor capilar, longe disso: apesar de ter sido usado por nomes lendários da cultura musical afro-americana, como Chuck Berry, Fats Domino, Louis Jordan, Little Richard, James Brown ou Muddy Waters, o estilo conk, por implicar uma tentativa de aproximação ao cabelo liso dos brancos, foi asperamente criticado pelo movimento Black Power ou por Malcolm X, que em seu lugar advogaram o visual afro, tornado hegemónico a partir de finais da década de 1960, princípios da de 1970).
Ao ver o novo look de Miles, Gordon rejubilou: "Now you hip, you can hang with us."
Então, o tigre saiu da jaula. E, passo a passo, entrou em cena.
(Continua)
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.