Lembra-se do Brexit? Negociações regressam à distância
É num cenário dominado pela crise sem precedentes do novo coronavírus, e com um mês de atraso em relação ao programado, que se inicia nesta segunda-feira a segunda ronda de conversações entre Londres e Bruxelas. Michel Barnier e David Frost, os negociadores chefes das equipas da União Europeia e do Reino Unido para a futura parceria entre as partes, ficaram doentes com covid-19.
O primeiro-ministro britânico Boris Johnson também, e ao contrário de Barnier e Frost, que apresentaram sintomas ligeiros, esteve nos cuidados intensivos.
Numa videoconferência realizada na quarta-feira, apelidada de "construtiva", Barnier e Frost revisitaram o trabalho técnico realizado no início de março e "concordaram com a necessidade de organizar novas rondas de negociações para alcançar progressos reais e tangíveis nas negociações até junho", diz o comunicado conjunto, o qual especifica que as discussões serão realizadas por videoconferência.
Depois da ronda que termina no dia 24, há outra agendada para a semana de 11 a 15 de maio e outra na primeira semana de junho. Nesse mês será realizado um balanço.
"Sejamos honestos: a liderança política está agora concentrada noutra coisa. Se a sua casa está a arder, essa é a sua primeira e única prioridade", comentou um funcionário europeu ao Politico.
Por ter passado para segundo plano e durante mês e meio a comunicação entre Downing Street e Berlaymont ter ficado em suspenso ouviram-se vozes a pedir o que Boris Johnson recusa: o pedido de extensão do atual período de transição, que termina no final do ano.
Foi o caso da diretora do Fundo Monetário Internacional. Kristalina Georgieva pediu ao Reino Unido e à UE para "não aumentarem a incerteza" na sequência da pandemia com a ameaça da ausência de acordo comercial e sem qualquer extensão das conversações. "Já é duro como está, não tornemos as coisas mais difíceis", afirmou a dirigente búlgara.
No início desta semana, o FMI previu que a economia britânica sofrerá uma quebra de 6,5% em 2020.
Se não houver acordo firmado até ao fim do ano, o Reino Unido sai do período de transição e as partes irão relacionar-se segundo os princípios da Organização Mundial do Comércio.
Uma lei sobre o Brexit aprovada pelos deputados britânicos em janeiro exclui qualquer extensão para lá de dezembro de 2020, quando termina o período de transição pós-Brexit.
O governo de Boris Johnson não perderia popularidade ao fazê-lo: segundo uma sondagem do final de março, dois terços dos eleitores concordam com o pedido do período de extensão para que o governo dê prioridade ao combate ao covid-19.
O prazo final para se aprovar um prolongamento do período de extensão termina no dia 1 de julho.
A intransigência da equipa de Boris Johnson fez surgir a especulação de que será Bruxelas a solicitar uma prorrogação, invocando atrasos causados pela crise.
Se isso acontecer, nota James Forsyth, editor de política da revista The Spectator, tal jogada "colocaria o governo britânico numa posição difícil". Porquê? "Rejeitar o pedido acabaria com a ideia de que o Reino Unido quer ser um bom vizinho da UE."
Uma terceira via seria a de ignorar a questão de saber quem pede a extensão. À The Economist, Georgina Wright, do think-tank Institute for Government, sugere que a comissão conjunta, na sua reunião do início de junho, concorde com o prolongamento do período de transição sem que nenhum dos lados fique com o ónus de ter sido o requerente.
O período de transição foi pensado para durar 21 meses, mas os sucessivos atrasos pela aprovação de legislação e ratificação pelo Parlamento britânico encurtaram os prazos. A tarefa já era hercúlea: a UE demora anos a concluir um acordo comercial com um parceiro. No caso mais rápido, com a Coreia do Sul, entre o início das negociações, em 2007, e a entrada em pleno vigor passaram mais de oito anos.
Cada acordo tem as suas especificidades e no caso do Reino Unido o que está em causa não é apenas um acordo comercial mas de parceria em vários domínios, acrescentando várias camadas de complexidade.
Na primeira ronda de negociações, que decorreu no início de março, foram 11 os temas escolhidos, da cooperação judiciária e policial às pescas, da mobilidade das pessoas às condições de concorrência equitativas, da energia aos transportes, do acordo de comércio livre à participação do Reino Unido em programas da UE, etc.
Os mesmos temas vão voltar a ser discutidos pelas equipas em videoconferências entre terça e quinta-feira. A segunda e a sexta-feira estão reservadas para as sessões plenárias e para um encontro político no final, como se pode ver na agenda publicada na sexta-feira à noite.
A política externa e a defesa, apesar de previstos na declaração política, foram temas rejeitados por Londres, que não deseja chegar a um acordo específico nessas áreas.
No final da primeira ronda de negociações, o dirigente francês fez um resumo e o quadro pintado foi em tons escuros. "Há diferenças. E são muito acentuadas", disse, embora reconheça que seja "natural" após uma primeira ronda de negociações.
Para Michel Barnier, os problemas a atacar são as condições de concorrência equitativas, a cooperação judiciária e policial em matéria penal, a arquitetura dos acordos e as pescas.
Na questão das condições de concorrência equitativas, a declaração política prevê que ambas as partes devem evitar distorções do comércio e vantagens competitivas desleais e a manutenção das melhores práticas e normas. "Mas há duas dificuldades: os britânicos não querem traduzir esses compromissos num acordo conjunto. Também não querem mecanismos adequados para garantir o cumprimento dos compromissos", nota Barnier.
Sobre a cooperação judiciária e policial em matéria penal, esta corre o risco de ser baseada em acordos internacionais uma vez que o Reino Unido não se comprometeu formalmente a continuar a aplicar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e também não quer reconhecer o Tribunal de Justiça da União Europeia, "o que é particularmente grave quando se trata dos direitos fundamentais dos indivíduos", lamenta o negociador chefe europeu.
O desentendimento sobre a arquitetura da futura parceria (chamado de governação do acordo e disposições horizontais) incide no facto de o Reino Unido querer assinar vários acordos setoriais específicos no lugar de um acordo global. "Não compreendemos por que razão, quando estamos a negociar de forma coerente sobre todos estes assuntos em paralelo, devemos avançar para uma miríade de acordos", critica Barnier.
A pesca é o quarto tema de divergência - e considerado o mais espinhoso. Ao ponto de um funcionário da UE ter dito ao Financial Times que "se não houver progressos nesta matéria, então não haverá progressos noutras áreas".
Londres não quer que o acordo sobre as pescas faça parte do acordo comercial. E propõe negociar todos os anos o acesso às águas. Para Barnier esta pretensão "é totalmente impraticável dado o número de espécies de peixe em causa (mais de cem!) e a previsão das necessidades dos pescadores".
"Uma atribuição estável e previsível das quotas é essencial para dar aos pescadores a certeza e a estabilidade de que necessitam, garantindo ao mesmo tempo uma pesca sustentável", afirmou Virginijus Sinkevičius, comissário das Pescas ao Financial Times. "Um acordo de pesca equilibrado deve fazer parte da nossa futura parceria económica com o Reino Unido", concluiu o lituano.
Mas um quadro britânico reafirmou que um acordo sobre o acesso às águas britânicas é outro assunto. "Sempre dissemos que procuraremos negociar um acordo global de comércio livre com a UE, e que um acordo de pesca será discutido separadamente."
Como se não bastassem as limitações de tempo e as divergências entre as duas partes, as limitações causadas pelo novo coronavírus também contam negativamente. Como aponta o Politico, a primeira ronda de negociações envolveu 200 pessoas reunidas em salas e a interagirem, o que não é a mesma coisa do que realizar videoconferências.
"Ambas as partes estão a trabalhar na melhor solução possível, dadas as circunstâncias. Mas não se pode alcançar a mesma dinâmica do que numa assembleia física. Ninguém é assim tão criativo", comentou um diplomata europeu ao Politico.