A realidade é muito teimosa

Tudo voltou ao normal. A preponderância do centro político pode ter muitos problemas, mas é o que temos e é com isso que temos de lidar.
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A preponderância do centro político pode ter muitos problemas mas é o que temos e é com isso que temos de lidar.

A poucos dias das últimas eleições apareceu um manifesto exortando ao voto na geringonça. Um elogio à solução governativa dos últimos anos propondo a sua repetição, mas que no fundo não era mais do que um apelo aos eleitores de esquerda para que não concedessem a maioria absoluta ao PS.

Pouco importa quais foram os votos que deixaram os socialistas longe da maioria absoluta, o facto é que os signatários tiveram o que queriam. Do que tenho dúvidas é que quisessem uma solução que nos dossiês importantes não passará pelo BE ou o PCP.

Mas será que alguém, conhecendo a história do PS e dos atuais chefes socialistas, pensa que seria possível algum acordo com o BE ou o PCP, e vice-versa, em questões essenciais para a comunidade? Será que alguém é capaz de dizer uma única mudança estrutural em que o BE ou o PCP estejam de acordo com o PS? Na legislação laboral ? Na segurança social? Na educação? Na reforma do Estado? Os subscritores daquele manifesto só poderiam querer uma de duas coisas: ou que o PS deixasse de ser o que é e sempre foi ou que o BE mudasse - do PCP não deviam ter ilusões. Bom, é verdade que a líder do Bloco se afirmou social-democrata, mas se assim for digamos que é uma social-democracia muito distante da do PS.
Há, no entanto, algo que não pode ser esquecido: todos os estudos de opinião diziam que a maioria dos eleitores dos três partidos queriam uma repetição da geringonça. Isto pode mostrar um problema complicado. Ou os eleitores desconhecem os programas dos partidos e as suas posições sobre questões essenciais ou querem que os partidos sejam aquilo que não são. No fundo, os representantes estariam distantes da vontade dos representados. Mas para chegar a esta possível conclusão - válida para muitos outros contextos - teríamos de ter respostas a perguntas que não se podem resumir a sim ou não à geringonça. No limite, só obtendo respostas a perguntas que constituem as linhas de demarcação entre os três partidos, como as referidas acima.

A geringonça foi um caso absolutamente excecional, ditado por um interesse mútuo tático e conjuntural. Curiosamente, o partido que mais tinha a perder se não se fizesse foi o que mais ganhou com ela: o PS.

Ninguém negará alguma quota de responsabilidade ao anterior governo nos bons resultados orçamentais e na diminuição do desemprego, mas também só uma enorme dose de desonestidade intelectual é que permite que se diga que os bons resultados obtidos também não seriam alcançados por um governo PSD-CDS. A conjuntura económica internacional ajudou, a Europa empurrou e os números do desemprego, por exemplo, mostravam já sinais de melhoria. Claro que havia a possibilidade de a governação ser bloqueada, mas aí Passos Coelho teria todas as razões para dizer que a culpa era da oposição, que não queriam governar ou quem governasse e umas eleições antecipadas seriam um alegre passeio do ex-primeiro-ministro até à maioria absoluta. A mesma maioria que obteria se cumprisse os quatro anos e que permitiria ao PSD e ao CDS não estarem a passar as presentes tormentas.

Num cenário desses, a pasokização do PS era inevitável e provavelmente o grande beneficiado seria o BE. Só que o PCP, por não querer perder o seu poder nos sindicatos - nomeadamente nos transportes que uma privatização anunciada reduziria - e pela proximidade das eleições autárquicas, chegou-se à frente e o BE ficou sem espaço para dizer que não aceitava a solução. E, claro, nem Catarina Martins nem Jerónimo de Sousa desconheciam os benignos horizontes económicos e as suas consequências políticas.

Apesar dessa maior fragilidade socialista, o facto é que quem mais prescindiu de bandeiras foram os outros parceiros. Até Passos Coelho e Paulo Portas prometiam iniciar a reposição de rendimentos - de uma forma mais lenta, verdade seja dita -, mas a ortodoxia austeritária manteve-se. Mário Centeno tratou disso. Não foi por acaso que o PS ganhou o centro político, ganhou-o porque governou para ele. Bons exemplos são o conflito com os professores e as greves dos transportes e enfermeiros, sem esquecer o essencial: as boas contas.

O PS tem uma dívida eterna para António Costa, salvou o partido sem ter de fazer sacrifícios à sua linha tradicional.

O que assistimos no pós-eleições não passou de folclore. Como as declarações dos socialistas de acordos preferenciais com a esquerda também não passam de um filme para eleitor de esquerda ver. O PCP, sério nas suas posições como sempre é, não entrou nesses jogos florais. O BE traçou as linhas que sabia que o PS não podia passar e os socialistas despediram-se com um até sempre. Não há qualquer taticismo nas posições do PCP e sobretudo nas do BE, há é uma impossível convergência em pontos essenciais.

Tudo voltou ao normal.

Fica provado que as pessoas que diziam que o nosso sistema estava definitivamente bipolarizado erraram. Compreendo a vontade, mas a realidade é muito teimosa. A preponderância do centro político pode ter muitos problemas, pode até ser neste momento da história um criador indireto de soluções extremistas - ainda para mais quando os dois partidos mais à esquerda e mais à direita atravessam uma crise muito séria correndo o risco de deixarem de ser tampões ao aparecimento de propostas radicais -, mas é o que temos e é com isso que temos de lidar.

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