A gargalhada de Centeno

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Sabem quando repetimos uma palavra tantas vezes que ela começa a perder o sentido, transforma-se em som sem significado? Pois é o que me anda a acontecer com a palavra "eleitoralista". O conceito gastou-se nos últimos dias, primeiro para classificar a remodelação e depois para qualificar o Orçamento para 2019.

Se por "eleitoralista" entendermos que há neste OE uma preocupação em municiar António Costa e o PS com argumentos para as campanhas de 2019, sim, trata-se de um documento eleitoralista. A questão é saber se existem ou não condições para sustentar as medidas consideradas eleitoralistas, quer para "uso" pelos socialistas quer aquelas que visaram satisfazer os eleitorados do Bloco e do PCP.

Quando falamos de orçamentos, o ponto decisivo não é aquele em que estamos, o dos primeiros passos da apresentação da proposta, mas a execução. No plano político, se o exercício proposto por Mário Centeno correr conforme o previsto, se a execução correr bem, Costa há de chegar à campanha para as legislativas com argumentos difíceis de rebater e o Bloco e o PCP terão matéria para se diferenciar.

Não é um mau ponto de chegada para uma maioria, uma geringonça que nasceu em clima de descrença, com previsões de uma mais do que certa descida aos infernos do défice, de penalização por instituições externas, de instabilidade política e certezas da incompatibilidade entre o respeito pelas metas de Bruxelas e uma agenda de devolução de rendimentos e maior redistribuição. Fechar o ciclo da legislatura com 0,2% de défice e o desemprego reduzido a metade não estaria certamente nos planos da oposição. Talvez seja aqui que nasce a febre com conceitos como "eleitoralismo" ou "irresponsabilidade orçamental".

Lembram-se como foi a estreia de Mário Centeno na Assembleia da República, já ministro das Finanças, nos primeiros dias de dezembro de 2015? Na primeira fila da bancada do PSD, Passos Coelho, Luís Montenegro e Hugo Soares riram com vontade enquanto ouviam Centeno. Aliás, o ex-primeiro-ministro chegou mesmo a limpar umas lágrimas de tanto rir à gargalhada.

Pois bem, três anos passados, outros tantos orçamentos aprovados e executados, e com o quarto a caminho - sem sombra de retificativos e com previsões sempre mais certeiras do que o BCE, a Comissão, o FMI ou o Conselho das Finanças Públicas, já agora -, não será legítimo que Centeno queira ser o último a rir? E que melhor forma de soltar essa última gargalhada - dificilmente ficará em Portugal para uma segunda legislatura - do que oferecer a António Costa um mapa argumentativo para uma vitória eleitoral?

Bem sei que é popular e garante cliques e coraçõezinhos nas redes sociais dizer qualquer coisa como: "Lá estão aqueles malandros a fazer tudo para ganhar as eleições! Lá andam na caça ao voto!" Mas - e deixem-me insistir num argumento que trouxe aqui aquando da remodelação - não é a conquista e a manutenção do poder a razão de ser dos partidos políticos? Dito isto, é perfeitamente legítimo desenhar um OE a pensar nas eleições, desde que a conjuntura o permita.

Queimados por más experiências nas últimas décadas, confundimos eleitoralismo com despesismo. Alguém pode dizer, sem confundir desejos com realidade, que estamos hoje no mesmo ponto em que estávamos em 2009? Quase um ano depois da queda do Lehman Brothers e com uma tempestade perfeita a formar-se à escala global, José Sócrates atirou-se a um aumento de 2,9% para a função pública. Aí, todos os adjetivos foram válidos.

Vamos a factos. Este OE não propõe uma descida de impostos, promete um défice de 0,2% e para aumentos no Estado reserva uma magra fatia de 50 milhões de euros. Onde está o eleitoralismo?

PSD e CDS talvez devessem centrar as críticas a este OE nos pontos em que ele é mais frágil. É um exercício em que as empresas continuam a ficar em segundo plano em relação às famílias; insiste em caminhos que começam a dar sinais de esgotamento, como a redução do desemprego - tem sido responsável por uma imensa fatia da consolidação nos últimos anos - ou a redução da despesa com juros, e parece desenhado para um país que navega em águas tranquilas quando há no horizonte sinais de borrasca.

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