O curador Miguel von Hafe Pérez conheceu o artista Miguel Palma em 1992, quando organizou em Serralves a exposição Imagens para os Anos 90 na qual mostrava alguns dos artistas da então nova geração. Palma ia expor o Olho Mágico e queria também mostrar uma peça nova, intitulada Engenho. "Mas tenho uma condição: tenho de ser eu a levar a obra de Lisboa para o Porto", disse-lhe o artista. O curador concordou sem imaginar o que iria acontecer. É que Engenho é um veículo a motor, "uma visão retro-futurista do automobilismo", que tanto nos faz lembrar um carro de corrida como um tanque de guerra. E Miguel Palma fez efetivamente a viagem de Lisboa para o Porto a conduzir este automóvel e chegou ao museu, escoltado pela polícia, com enorme aparato. "À sua chegada, os espectadores perguntavam-se: isto é arte?", lembra Von Hafe..A pergunta volta a fazer sentido agora, quando revemos Engenho no Museu Berardo, em Lisboa, onde nesta quarta-feira se inaugura a exposição Miguel Palma: (Ainda) o Desconforto Moderno, com 54 obras que ilustram os cerca de 30 anos de carreira do artista. "O Miguel Palma trabalha muito nesta intersecção entre a arte e os outros saberes, tecnológicos ou artesanais", explica o curador, destacando o facto de o artista trabalhar muitas vezes "sobre a produção industrial, apoderando-se de milhentos outros objetos e aparelhos, transformando-os"..Não por acaso, a sua exposição no Museu do Chiado, no ano passado, chamava-se Recolector Transgénico. No seu armazém em Torres Vedras, Miguel Palma vai guardando tudo o que lhe aparece à frente: coisas que encontra no lixo, coisas que os amigos lhe trazem, coisas que compra. São coisas de muitos tipos, mas com destaque para máquinas, veículos e outros aparelhos mecânicos ou eletrónicos. E que depois transforma em obras de arte. Por exemplo, logo à entrada do museu, ainda antes de se comprar bilhete, encontramos Accident Motion Pictures (2003) - uma ambulância que Miguel Palma encontrou numa oficina, na beira da estrada, e que acabou por se transformar numa "câmara de captura de acidentes rodoviários"..Temas como a velocidade, a mobilidade, a relação com a natureza ou com a urbanidade são recorrentes na sua obra mas sempre sujeitos a uma intervenção poética", explica Miguel Von Hafe. Veja-se, por exemplo, o caso de Google Plane (2008), o enorme avião que esteve durante muito tempo suspenso na escadaria do Museu Berardo e que agora está nesta exposição. Esta é uma das três obras da Coleção Berardo que podem ser vistas aqui, a par de Lisboa-Roterdão (2001) e da cadeira Valor (2002). Já A Montanha é uma obra criada especialmente para esta exposição: uma enorme montanha de ferro que produz gelo..São muitas as "máquinas em movimento" que encontramos nestes 1200 metros quadrados de exposição. Há, no entanto, algumas peças que na sua imobilidade nos provocam reflexões igualmente pertinentes. É o caso de Already Made (2004), uma enorme bola que Miguel Palma trouxe de uma oficina e que foi feita pelos funcionários a partir dos autocolantes que retiravam dos pneus - "uma reflexão sobre a passagem do tempo", explica o artista. "Era uma bola pequena, eles jogavam à bola com ela, mas depois foi ficando cada vez maior." E já que falamos de passagem do tempo, convém avisar que quem quiser pode picar o ponto à entrada da exposição e controlar o tempo que dispensa às obras de Miguel Palma - a obra chama-se 30 Minutos..Há ainda Europa 2000 (1999), que pega numa mesa de pingue-pongue e brinca com a sua marca (Europa 2000) para nos falar das muitas crateras que existem na Europa. A guerra é, aliás, um dos temas recorrentes de Miguel Palma - repare-se em Think Anti-Tank (2004) ou Projeto Sementeira (2006) - um objeto que parece uma arma antimíssil mas é, na verdade, "uma forma de criar vida", uma vez que é uma forma de lançar sementes para a terra..Miguel Palma mostra aqui sobretudo esculturas e instalações mas também fotografias, vídeos e desenhos. E evoca muita da sua atividade performática. Na inauguração, nesta quarta-feira, às 19.00, Palma vai recriar a performance Suspensão (2015). O artista irá ser suspenso numa das paredes do museu. "Na verdade, não vai acontecer grande coisa. Há uma enorme expectativa mas depois há uma frustração", explica ele. Um pouco como se contrariasse a ideia de que toda a arte deve ser espetáculo..Nascido em 1964, Miguel Palma é descrito pelo curador como "um artista que se apropria das narrativas de uma modernidade em permanente questionamento para melhor refletir sobre o presente". "A criatividade do artista desdobra-se numa pulsão construtiva que convoca e problematiza conceitos como o progresso, a degenerescência, a velocidade e o fracasso", explica Hafe Pérez.."Eu, muitas vezes, sinto-me desconfortável, até como artista, o que tem que ver com uma inquietação, um sobressalto", explica Miguel Palma a propósito do título da exposição. "Esse sobressalto é o resultado de uma urgência que eu sempre senti no trabalho, que não é o de fazer por fazer mas porque tem de ser feito. Tem que ver com uma vigilância." E conclui: "Se o mundo fosse confortável, eu não faria arte.".Exposição "(Ainda) o Desconforto Moderno"Museu Berardo, Lisboa De 19 de setembro a 19 de janeiro de 2020