Parlamentares

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A notícia segundo a qual dois deputados nacionais ultrapassaram a fase dos insultos verbais e entraram em desforço físico junto ou dentro do edifício do Parlamento correu as ilhas e também pelo menos a parte da diáspora onde chegam as nossas emissões, porque não só a Rádio Nacional proporcionou ao facto abundante cobertura, como também a televisão lhe dedicou largos 22 minutos de tempo de antena, ouvindo não só os contendores como também as eventuais testemunhas da lide, e por fim um jurista, que, de código em punho, esmiuçou a diferença entre uma briga e uma agressão pura e simples, para concluir que no caso em apreço mais parecia ter havido uma agressão de um deputado a outro, na medida em que tudo levava a crer ter havido um único murro. Porém, tão bem aplicado e com tanta ciência, que não houve mais nada a fazer senão conduzir o espancado ao hospital para os devidos curativos. E para comprovar a veracidade do incidente mostrou, junto a uma parede, uma mancha de sangue que por sinal mais fazia lembrar o local onde uma galinha poderia ter sido decapitada.

Já na parte de tarde do mesmo dia, o deputado desancado, já vindo do hospital, como se deduziu de um pequeno mas mal-amanhado adesivo castanho que, ligeiramente acima da testa, lhe enfeitava a cabeça, convocou uma conferência de imprensa em que, com riqueza de pormenores, explicou as prováveis razões desse "ato ignóbil" que, disse, não descansará enquanto não o vir resolvido na justiça.

Tenho escutado uma ou outra pessoa referir a vergonha nacional de se saber dois representantes do povo trocando socos e pontapés (quanto aos insultos já estávamos habituados!), mas pessoalmente estou convencido de que a comunicação social, particularmente a televisão, deu mais importância ao caso porque é, afinal de contas, o resgatar de uma velha tradição das ilhas que de há muito vinha sendo postergada a favor das novas ideias de que o mais importante é o verbo, os socos podem dizer quem tem mais força mas não quem tem razão, etc., mas na verdade nunca foi bem assim entre nós, e os eleitos da nação mostraram-no com dignidade e coragem. Lembro-me de quando era menino na Boa Vista: ai daquele que se permitisse entrar em casa tendo levado pancada de algum colega na rua. Era imediatamente denunciado como cobarde e a própria mãe obrigava o sovado a sair e desafiar o outro, brigar como macho, Ninguém entra em minha casa com pancada de estranho, dizia furiosa.

De modo que crescemos nessa tradição, e para as nossas gerações a única forma de resolver conflitos era ad baculum. E para isso treinávamos desde menininhos numa arte filial da capoeira brasileira a que chamávamos de "pegar queda". Lembro-me de um jovem português que veio residir aqui em São Vicente. Ficou tanto tempo que já se sentia e se afirmava cabo-verdiano, tendo casado com uma mulher da terra e adotado o crioulo como sua língua oficial. Ora certa vez foi ter comigo, estava justamente ofendido, queria levar ao tribunal um fulano qualquer que se permitira o atrevimento de bater na mulher dele. O cabo-verdiano não resolve estas coisas assim, expliquei-lhe, se queres mesmo ser como nós, vais aí ao fulano, desafia-o e aplica-lhe dois sopapos no queixo. Ele ficou a olhar para mim horrorizado. Como me aconselhas uma coisa dessas, exclamou, isso seria primitivo, eu não sou capaz de fazer isso. Está bem, disse-lhe, mas não só nunca chegarás a ser um cabo-verdiano, como também a tua mulher vai ficar com a sua bofetada sem resposta, porque esses são processos que ficam pendentes no tribunal eternamente à espera de amnistia.

O deputado dito agressor alinha orgulhosamente nesse padrão nacional. Diz que estava a entrar na Assembleia, e ainda na escada o outro atirou-se a ele. Penso que a Constituição me permite em legítima defesa reagir quando sou atacado, justifica-se, eu fui atacado e reagi como qualquer homem faria no meu lugar.

Bem, quem não está de acordo com nada disso é a comunicação social, segundo ela essa briga apenas reforça a já péssima imagem pública dos deputados nacionais.

Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018.

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