D. Aida, 105 anos, falante de patoá

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Soube ontem da morte de Aida de Jesus, aos 105 anos, e recordei-me com grande carinho das aulas de Antropologia no ISCSP, em que a professora Ana Maria Amaro fazia às vezes questão de nos mostrar um pouco do seu patoá, crioulo macaense falado durante quatro séculos e hoje ameaçado de extinção. Ainda há dois anos o South China Morning Post publicou uma reportagem sobre essa língua que mistura o português e o cantonês e palavras vindas de outras partes da Ásia por onde andámos desde os tempos de Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque. A ilustrar o artigo do grande jornal de Hong Kong estava uma fotografia de Aida de Jesus sorridente, na hoje cidade dos casinos. E o título era "O patoá, a língua moribunda de Macau, e a macaense de 103 anos que a fala".

Ana Maria Amaro (falecida em 2015) não era uma filha da terra, como se diz dos locais. Chegou a Macau com vinte e tais anos a acompanhar o marido militar. Ali viveu quase duas décadas, ali ensinou e ali investigou. Mesmo de regresso a Portugal, nunca deixou de escrever sobre essa cidade da foz do rio das Pérolas, desde 1557 espaço de comércio entre portugueses e chineses mas também de mestiçagem. Ofereceu-me um dia o seu 'Filhos da Terra', livro sobre gente como Aida de Jesus, em que juntando conhecimentos de antropologia e de biologia (era formada nas duas áreas) defendia que os macaenses resultavam de misturas mais complexas do que a simples soma de portugueses e chineses. Têm também antepassados de outras partes da Ásia. E no patoá existem influências do cingalês, do malaio, de línguas da Índia...

A fama de D. Aida, designação com que brilhou em reportagens da BBC e de outras televisões, tinha muito que ver com a defesa de outra das especificidades de Macau, uma gastronomia que junta o Ocidente e o Oriente em doses variáveis consoante os pratos . Foi cozinheira em grandes hotéis, brilhou depois no seu restaurante Riquexó, que para os portugueses que visitavam Macau depois da transferência do território para a China em 1999 era tanto ou mais exemplo de portugalidade do que a Praça do Leal Senado. O patoá, esse, ela falava já com muito poucos. Em criança comunicava assim com a avó, hoje talvez só meia centena de macaenses falem esse crioulo. Não admira que a UNESCO o inclua nas línguas ameaçadas.

Convém recordar, quando tanto hoje se debate a história de Portugal e sobretudo os Descobrimentos, que a chegada dos portugueses a certas zonas do mundo foi muito anterior à de outros povos europeus. Macau entreposto comercial luso-chinês cedido pelos Ming existia dois séculos e meio antes de os britânicos terem conquistado Hong Kong à dinastia Qing, então já na sua fase crepuscular. Também promoveram mais misturas os portugueses, não só de gente como de línguas e até de gastronomias.

Gosto sempre de ver o rosto de surpresa de alguns amigos estrangeiros conhecedores da Índia quando lhes digo que o famoso vindaloo ou vindalho típico de Goa é uma reinvenção do vinha d'alhos com recurso a essas especiarias que levaram D. Manuel I a enviar as caravelas para a Ásia.

Quando se cantam tantas loas à globalização, se enaltece o multiculturalismo e se prega a capacidade de fazer pontes entre culturas, convém prestar homenagem a quem, só por existir, sempre tal encarnou. É o caso de Aida de Jesus, D. Aida, macaense, símbolo de uma relação de meio milénio entre Portugal e a China, uma das derradeiras falantes do patoá.

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