Berardo e o icebergue

Se o espetáculo infame que o madeirense deu ajudar a que se apurem responsabilidades e demos por encerrado um período negro da nossa história, por mim, até pode ficar com a comenda.
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O Joe Berardo foi à Assembleia da República, gozou com a cara dos deputados, cuspiu na cara dos portugueses e lembrou-nos de que honra e dignidade não são coisas para toda a gente. Não houve quem tivesse escondido a indignação, e ainda bem. É, aliás, um dos poucos bons sinais destes tempos. Vivemos demasiado tempo a olhar para o chamado mundo dos negócios financeiros como se aquilo fosse uma coisa que não dissesse respeito ao comum dos mortais, que se regia por umas leis que não nos diziam respeito e em que vigarices e golpadas faziam parte do jogo.

O despertar, como é infelizmente costume, só aconteceu quando percebemos que a coisa nos entrava no bolso. E de que maneira.
Sendo a indignação, neste caso, boa tem o problema da maneira como a dirigimos. E a tendência tem sido para selecionarmos uns personagens em que concentramos todo o ódio, toda a indignação e a quem atribuímos todas as culpas e depois não só ignoramos o contexto como todos os outros responsáveis, que normalmente têm tantas ou mais culpas no cartório do que o bode expiatório. Todos os problemas causados pelo BPN foram da culpa exclusiva de Oliveira Costa, a debacle do Grupo BES apenas se deveu a Ricardo Salgado, Sócrates foi o inventor do desgoverno e por aí fora. Os problemas seriam tão fáceis de resolver se assim fosse.

Agora temos o Berardo que se converteu no inimigo público número um dos portugueses. Até os partidos não conseguiram melhor do que aproveitar o tema para uma interrupção nas tricas dignas de recreio de pré-primária que andam a exibir na campanha eleitoral debitando umas acusações que apenas servem para adensar uma nuvem de suspeitas, que em nada contribuiu para a compreensão do caso. Atingiu-se o ridículo de fazer da retirada da comenda ao caloteiro Berardo uma bandeira. Quero lá saber se o homem é comendador ou não, basta lembrar-me de alguns moços e moças que ostentam comendas para dar mais importância à roupa do Conan Osíris.

O Berardo merece tudo o que tem sido dito sobre ele. Um desavergonhado ruidoso. E é também por todo o ruído que gera que tem todas as atenções voltadas para ele. Ajuda até que alguns indivíduos que pregaram calotes da mesma dimensão ou ainda maiores passem pelos pingos da chuva. Evitam dar entrevistas a revistas sociais a ostentar o padrão de vida que continuam a gozar, bajulam diretores de jornais sensacionalistas para que a lama siga outros percursos, cultivam a amizade de políticos e comentadores poderosos para que possam seguir com a sua vidinha sem sobressalto de maior. Tivesse Berardo aparecido de baraço ao pescoço e seguisse o percurso destes outros artistas e nem um centésimo das coisas que se andam a dizer seriam ditas. No meio de tudo, um serviço Berardo fez ao país: pôs toda a gente de antenas levantadas. Bendito descaramento.

O pior de tudo é esquecer as quadrilhas que utilizaram o Berardo. O homem, que tem o seu nome na frontaria de um dos mais importantes edifícios públicos dedicados à cultura em Portugal, foi um peão numa guerra suja pelo controlo da Cimpor - com os resultados conhecidos para o país -, na luta pelo poder no BCP e em jogos políticos de que apenas conhecemos a ponta do icebergue. Dessa luta, aliás, só sabemos que no fim dois dos gestores da CGD que assinaram os conhecidos empréstimos sem garantias passaram para a liderança do BCP: Santos Ferreira e Armando Vara.

Curiosamente, no início da luta pelo BCP, Berardo aparecia como alguém que estava do lado certo, o de Paulo Teixeira Pinto, contra a clique de Jardim Gonçalves, Pinhal e companhia que trataram e queriam continuar a tratar do banco como se fosse propriedade exclusiva deles. Pura ilusão. Berardo era afinal um bispo que se queria fazer pagar regiamente por serviços pouco dignos.

Para que existisse um Berardo (e outros que tais) existiram pessoas que assinaram os empréstimos/doações. São estas que continuam a gerir bancos e a ter papéis relevantes para a comunidade que precisam de ser escrutinadas, que têm de vir dizer o que as moveu. A verdade é que não consta que Berardo lhes tenha apontado uma pistola à cabeça que essas autênticas doações terem sido feitas. E, já agora, com o dinheiro do banco do Estado, que nos tem custado os olhos da cara.

São eles os maiores responsáveis pela criação de Berardos e similares.

Não é novidade para ninguém que os populismos nascem por várias razões e não são iguais de país para país. O nosso nascerá deste tipo de situações, e terá mais ou menos sucesso quanto maior ou menor for a sensação de que não só ninguém será punido como também de que tudo poderá continuar na mesma.

O que também precisa de ser dito é que se por um lado temos de esclarecer tudo, também não podemos resolver as situações a reboque de indignações e levantamentos populares. A possibilidade de punir arbitrariamente, ou seja, sem o respeito pela lei e pelos tribunais - se for caso disso - através de decisões administrativas avulsas e pessoalizadas será uma emenda bem pior do que o soneto.
O Berardo não é o mal encarnado, é a face, neste momento, mais visível de um sistema financeiro que funcionava com os incentivos errados, de uma promiscuidade criminosa entre o poder político e o económico e de uma elite que se julgava impune.

Não temos grandes razões para otimismos, até pelas reações do poder político, mas se o espetáculo infame que o madeirense deu ajudar a que se apurem responsabilidades e demos por encerrado um período negro da nossa história, por mim, até pode ficar com a comenda.

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