As sete vidas de Zé Índio. A morte do bombeiro no Baloiço do Trevim, janela para a Lousã

José Augusto Dias Fernandes morreu no combate a um fogo na serra da Lousã. Um homem intenso: benfiquista, militante do PS, motorista da câmara, ex-árbitro de futsal e observador de 1.ª categoria, fundador de instituições comunitárias, como a AFRAL (de desenvolvimento da aldeia natal, Fraldeu). Num dia em que os incêndios voltaram a não dar tréguas o DN lembra Zé Índio, numa homenagem a todos os bombeiros.
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As trovoadas que irromperam ao final da tarde de sábado, dia 11 de julho de 2020, um pouco por todo o país, terão sido a causa do incêndio que deflagrou numa encosta da serra da Lousã, na zona do famoso Baloiço do Trevim, uma das privilegiadas janelas para a beleza áspera e generosa da cordilheira central (constituída ainda pelas serras da Estrela e Açor). Uma equipa chefiada pelo chefe dos Bombeiros Voluntários de Miranda do Corvo, José Augusto Dias Fernandes (55 anos, quase 40 de bombeiro), foi encurralada pelas chamas. O mais experiente e graduado morreu, deixando na região uma comoção palpável, mais ou menos silenciosa. A morte de um bombeiro é sempre desconcertante para uma comunidade, talvez porque pertence à primeira linha de defesa contra acidentes e de socorro em emergências médicas.

Tombou o mais tarimbado, um homem que tinha combatido incontáveis fogos naquelas encostas, vales e lugares. Um homem de 55 anos, motorista de profissão (funcionário da Câmara Municipal de Miranda do Corvo desde 1996), homem de mil trabalhos comunitários por vocação cívica.

Zé Índio, a alcunha que pegou por causa dos traços físicos, era um homem intenso nas infinitas causas que abraçou, fosse a fundar associações ou a discutir os jogos e os resultados do Benfica, o seu Benfica. Como contrapeso, foi árbitro nacional de futsal e era observador de 1.ª categoria nacional, dos quadros da Federação Portuguesa de Futebol, desde que terminou a carreira dentro das quadras há cerca de uma década.

A guarnição liderada por José Augusto acorreu a um incêndio, que segundo a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), deflagrou pelas 18.26 do dia 11 de julho, mobilizando 250 operacionais e 70 veículos, tendo sido dado como dominado por volta das 21.00. Eram quatro homens, três saíram vivos, mas em más condições: um deles sofreu queimaduras graves nos pés (tem de se deslocar de cadeira de rodas), outro, apesar dos ferimentos mais ligeiros, está traumatizado, e um terceiro também foi severamente castigado pelas chamas.

Decretados os três dias de luto municipal (12, 13 e 14 de julho), as bandeiras nos Paços do Concelho, na Praça José Falcão, ficaram a meia haste. O presidente Miguel Baptista (completa 51 anos no próximo mês), também natural de Fraldeu, e amigo de Zé Augusto, recolheu-se e poucas aparições ou intervenções públicas fez desde o dia 11. A 14, o funeral realizou-se de forma solene, com uma cerimónia no quartel dos bombeiros, seguindo a parada fúnebre para a Igreja da Boa Morte. Milhares de pessoas encheram as ruas, da família aos amigos, do Presidente da República ao ministro da Administração Interna, de corporações de bombeiros de toda a região a colegas ligados ao futsal e à arbitragem desta modalidade, de curiosos a conhecidos.

"Se conhecia o Zé Augusto? Então não conhecia? Ele era motorista da câmara e estava encarregue de ir buscar os estrangeiros a Lisboa e trazê-los para os hotéis. Era um homem impecável", contava ao DN o proprietário do Hotel Quinta do Viso, instalado num sopé com uma das vistas mais atrativas e abrangentes de Miranda do Corvo. Fernando Pereira é um empresário com décadas da vida dedicada aos negócios da hotelaria, restauração e diversão noturna em Miranda - Teia acende várias luzes em muitos mirandenses corvenses, associados a restaurantes, mas também à discoteca, entretanto fechada, onde algumas gerações se conheceram a dançar. "Foi uma perda muito grande para a terra."

Esta frase é humanamente muito natural nas primeiras fases do luto de uma comunidade, sobretudo uma não muito grande. O concelho de Miranda do Corvo tem cerca de 13 mil habitantes distribuídos assimetricamente pelas quatro freguesias: cerca de sete mil na que tem o mesmo nome do concelho; à volta de quatro mil na União de Freguesias de Semide e Rio Vide; e um pouco mais de mil em Lamas e menos de mil em Vila Nova. A menos populosa e uma das mais famosas pela passagem do médico Adolfo Correia da Rocha, entre 1934 e 1937 - e que passou à posteridade como escritor, com o pseudónimo Miguel Torga.

Como é fácil de perceber, a pancada mais forte abateu-se sobre a família. Os pais, Arlindo e Edite, irmã do histórico socialista Nuno Filipe, antigo deputado à Assembleia da República (VI Legislatura, 1991-1995), que presidiu à Distrital do PS, entre outros cargos nas estruturas locais socialistas, e que foi presidente do conselho diretivo do Centro Regional de Segurança Social do Centro. E o principal instigador da militância da família no Partido Socialista. O irmão Joaquim Fernandes, ou Quim Comédias, e os sobrinhos António Sérgio e Ana. O filho José Mário, de 20 anos, fruto do primeiro e único casamento registado, com Elisabete Mendes. E a atual companheira de mais de uma década, Marília Almeida, cabeleireira e dona de um salão na vila, também ela com dois filhos jovens adultos de uma anterior relação.

Mas os colegas bombeiros também estão na linha da frente do sofrimento. Porque perderam um amigo, um colega e um bombeiro na linha de fogo e têm de lidar com isso e com os fogos e emergências que diariamente têm de enfrentar. Por isso, concentraram-se desde o fatídico sábado no quartel, com a supervisão de psicólogos e outros técnicos especializados pelo INEM e pela ANEPC.

"Mas não só", diz Eurico, há seis anos presidente da associação humanitária que gere a corporação, mas com uma ligação de 30 anos, em várias funções e cargos. "Têm as corporações todas a oferecer ajuda. Isto é gente solidária, habituada a lidar com tragédias", acrescenta o bancário aposentado que hoje em dia vive a 100% os bombeiros. "É o que a minha mulher diz", desabafa.

Na vila, e a autarquia tem esta radiografia tirada, há um grande envolvimento dos bombeiros com a comunidade, e vice-versa. O território é pequeno, apesar de tudo, as pessoas conhecem-se todas. Pelo menos de vista. E calcorreando cafés e restaurantes e a Casa do Benfica de Miranda do Corvo percebe-se isso.

Um homem "intenso"

Zé Índio era um bombeiro da chamada velha guarda. Começou aos 16 anos e, para se ter noção, combateu incêndios com o omnipresente Jaime Marta Soares. O homem de 77 anos que ocupa cargos públicos há 46: 37 anos autarca pelo PSD em Vila Nova de Poiares (concelho a a 22 quilómetros de Miranda), tendo sido comandante dos bombeiros locais, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, ex-presidente da Assembleia Geral do Sporting.

"Sou amigo da família há muitos anos e conheço o Zé Augusto mais de perto desde os anos 1990", conta Fernando Araújo, 71 anos, presidente da Junta de Freguesia de Miranda do Corvo desde 2009 (em 2021 retira-se por vontade própria e imposição da limitação de mandatos, mas colabora com a junta, em várias funções, há três décadas).

Fernando Araújo, ex-marinheiro ("voluntariei-me antes dos 18 anos"), tornou-se confidente e amigo íntimo do antigo subordinado. "Fui chefe e supervisor dele na câmara até me reformar em 2007", pontua o autarca.

"Além de falar com ele todos os dias, porque moro em frente aos bombeiros e ele ia a minha casa conversar sobre Miranda, fui com ele na qualidade de motorista da câmara e da presidência da câmara [desde 2014] a vários congressos da Associação Nacional de Municípios Portugueses e muitos outros compromissos autárquicos", recorda Fernando Araújo.

"O Zé Augusto queria ver Miranda a andar para a frente. Tantas vezes me ligava a dizer 'passei na rua tal e vi isto'; 'as pessoas precisam disto'. Era militante socialista, como toda a família, mas não mandava recados, dizia na cara", retrata. A tal intensidade de que toda a gente vai falando formal e informalmente sobre José Augusto Fernandes.

"Fazia parte das minhas listas à Assembleia Municipal, dava sempre a cara, mas nunca teve nenhum cargo", sublinha.

Depois, o futebol: "Era um adepto ferrenho do Benfica." E acalorado, outro código sociocultural familiar. Aliás, passava alguns fins de tarde na Casa do Benfica de Miranda do Corvo, a jogar cartas - para lá levou, e lá ficou, um baralho de cartas de caixa negra.

"Além de ser cliente, era amigo. Metia-se nas coisas sempre de forma apaixonante. À tarde, sei que ele ia jogar umas cartas à Casa do Benfica", diz Marco Moita, presidente desde que a casa dos benfiquistas de Miranda abriu em 2010 (e foi inaugurada, oficialmente, pelo presidente do SL Benfica, Luís Filipe Vieira, a 12 de novembro de 2011. "Ninguém quer ir para o meu lugar...", desabafa o profissional de seguros e proprietário de uma agência na vila.

"O Zé Augusto era benfiquista a 120%, não a 100%. Quando havia jogos de futsal no gimnodesportivo [onde o Casa do Povo de Miranda do Corvo realiza os seus jogos], era muito fervoroso", lembra-se Marco Moita.

A explicação para tanto fervor é simples: aliado ao temperamento apaixonado e intenso nas causas e nas coisas, colaborou anos e anos com a principal coletividade recreativa e desportiva do concelho. A Casa do Povo, fundada em 1983, tem mais de 400 atletas, dos 8 anos aos seniores, tem futsal feminino. E o número 10 é Zé Mário, o filho de Zé Augusto. E o sobrinho Sérgio, filho do irmão Joaquim, que é dirigente da agremiação, também faz parte do plantel sénior. Além de que o Zé Índio colaborou muitos anos com a coletividade - até nas funções de motorista da câmara, em que nos últimos anos estava ao serviço do transporte escolar, de turistas e de instituições desportivas e culturais do concelho, como a Casa do Povo, o Grupo Desportivo Moinhos, o Clube Atlético Mirandense, o Clube Náutico de Miranda do Corvo ou o Grupo Recreativo Mirandense - onde se inclui a filarmónica.

E aí vem outra faceta da vida intensa de Zé Augusto, a música. "Eu organizo uma sessão de fados na adega de minha casa há anos e ele era um dos convidados habituais. Era um crítico positivo", regressa Fernando Araújo a memórias recentes e mais antigas.

"Eu toco viola e temos várias pessoas que cantam. Ele tocou fliscorne, que é uma espécie de trompete, mas maior, na filarmónica", precisa o presidente da junta.

As festas eram outra frente de luta comunitária. Fundador e membro da direção da AFRAL - Associação Cultural para o Desenvolvimento de Fraldeu, Zé Índio foi mordomo das Festas de Fraldeu (segundo fim de semana de agosto). E tinha já um plano de contingência para o ano marcado pelas restrições provocadas pela pandemia covid-19. "Queria fazer uma sardinhada simbólica", contaram informalmente alguns dos camaradas nos bombeiros voluntários, que acabaram por não falar oficialmente para esta reportagem porque a autorização superior não chegou.

Há um inquérito do MAI a decorrer, há questões para resolver com a seguradora (indemnização à família), há uma infinidade de burocracia, de preocupações e de feridas para tratar em Miranda do Corvo.

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