A crise
A anotação de que as estruturas jurídicas e políticas globais, que a utopia da ONU anunciou depois do fim da Segunda Guerra Mundial, parece suspensa de esperança pela frequência com que o século XXI (2020) é apontado como sendo provavelmente um mundo sem bússola. As causas desta visão inquieta, em face da desordem da obediência aos normativos jurídicos e éticos das relações, quer entre poderes políticos quer entre poderosas instituições privadas que atuam sem subordinação aos poderes responsáveis e nacionais.
Tudo atinge, de visão insegura, o relacionamento, por exemplo, entre os EUA e a China, a turbulência dos mares, a paralisia da visão multilateralista da ONU, a crise do Brexit, a paz violada. Como se trata sempre dos humanos, a promessa mais preocupante começa com as migrações, a respeito das quais o Pacto de Marrakech, assinado em dezembro de 2018, versou. Tratou-se de uma espécie de base de uma governança mundial do fenómeno que, depois do terrorismo e das guerras variáveis, mais fragilizou o respeito pelos homens obrigados a fugir à origem com esperança de ter futuro, incluindo as crianças.
De facto, o diálogo de alto nível da ONU, mais o facto de ter a adesão de 164 países, tem a resistência visível de uns 12, sendo certo que os EUA, um país nascido das migrações, foi um dos que votaram contra, e o que se passa no Mediterrâneo não valoriza a imagem da Europa. Partir deste facto, para o relacionar facilmente com outros preocupantes, tudo leva a tentar compreender, e limitar, a crise do multilateralismo da ONU. Ao contrário do respeito pela tentativa de repor o comportamento perante o voto da Assembleia Geral, que não o teve na Carta como dever, Assembleia que alguns destacados políticos não frequentam, como historicamente aconteceu com De Gaulle, Stalin, Churchill, a conclusão é que o multiculturalismo está admitido, mas a prioridade da ONU, e sobretudo do seu secretário-geral, é manter a paz e a segurança internacionais, o que continua a ser difícil.
Tem interesse notar que Trump não evitou declarar na NATO que era obrigatório que os membros da organização aumentassem a sua contribuição monetária, desta vez suficientemente multiculturalista, porque se trata do seu interesse. A sua política faz duvidar do acerto do notável George Friedman no seu livro Os Próximos 100 Anos (D. Quixote, 2009), afirmando que "a posição dos EUA no sistema internacional será a questão-chave do século XXI e que outros países irão debater-se com a sua acusação". Se há um único aspeto a defender neste livro, é que "os EUA, longe de se encontrarem à beira do declínio, estão, na verdade, a iniciar a sua ascensão...
No que me diz respeito, é deveras estranho escrever um livro cuja verdade ou falsidade em geral jamais estarei em posição de confirmar". A competição do seu Estado, dura e prova esquecida da diplomacia, é com qualquer Estado ao qual decida impor a sua decisão, e principalmente é com a China, com amostras do que chama "pressão máxima", com o México, o Irão, o Iraque, com o objetivo de mudar o regime. Em resumo, os noticiários deram conta de 70 países atingidos pela sua intervenção crítica, invocando que violam a concorrência, protecionismo deliberado ou indireto, atentados aos direitos humanos, limitação da liberdade religiosa, corrupção, apoio ao terrorismo, complacência com o tráfego de drogas (Alice Ekman).
Não é difícil reconhecer que são comuns advertências caóticas, a proclamar o poderio americano, a sua capacidade militar nacional. Infelizmente para o globo, além de abandonar o acordo de Paris, multiplica o espírito de recusar ou apoiar os seus dizeres, acontece que o globo foi atingido pela pandemia, que atingiu todas as etnias, Estados, estruturas internacionais, crise das economias, suspensão das culturas e modo de vida, tendo ainda sido agravado por um conjunto de intervenções do presidente americano que seguramente atingiam não apenas os governos que assumiam as responsabilidades, mas universidades, institutos de investigação, profissionais devotados e sofrendo perigos.
A crise atingiu as estruturas, valores, recursos, vida e modo de vida. O mundo não é aquele que tais intervenções atingiram, é outro, tem outras exigências, talvez outra visão e prática internacionais. Os previstos cem anos vão ser diferentes. Esta política americana tem de recuperar o seu grande passado e procurar regressar a ele, com apoio na meditação humanista a que as exigências da evolução enriqueceram o seu passado alargando o ocidentalismo que teve a Europa como iniciadora, e ocupando, sem deixar de ter de assumir erros, um lugar dominante que as duas guerras mundiais testemunharam, no combate vencedor, e nas duas propostas históricas, que foram a SDN e a ONU. A crise da memória não anda longe da leviandade.