Finlandização. Conceito maldito?

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Famosos Finlandeses era o nome da exposição que vi há alguns anos em Helsínquia. Fiquei surpreso com dois terem sido governadores do Alasca, mas depressa percebi a lógica: até ser vendido aos Estados Unidos em 1867, o território no noroeste da América pertencia à Rússia, e na época a Finlândia era um novo grão-ducado russo. Habituados ao clima ártico, alguns finlandeses acharam banal servir os czares no outro confim gélido do império, afinal estes tinham sido tão liberais com essa aquisição tardia que em Helsínquia permanece a estátua de Alexandre II.

Hoje a Rússia continua a ser o maior país do mundo. Olhe-se para o mapa-múndi e veja-se como é imensa a distância entre o enclave de Kalininegrado, vizinho da Polónia, e a cidade de Vladivostoque, próxima da Coreia do Norte. E há até no estreito de Bering uma ilha russa que fica a apenas quatro quilómetros de uma ilha dos Estados Unidos. Por isso, os 11 fusos horários.

Talvez possa existir no Kremlin alguma nostalgia pelos tempos em que a Rússia ia da Finlândia ao Alasca, território só suplantado pelos impérios mongol e britânico. Mas aquilo que hoje molda a política externa de Moscovo tem referências mais próximas: o fim da União Soviética em 1991, que deu origem à Rússia e a outras 14 repúblicas.

A União Soviética, sucessora do Império Russo, tinha uma área de 22,4 milhões de quilómetros quadrados. A Rússia agora tem 17,1 milhões de quilómetros quadrados. Nas contas da diferença, constam o Cazaquistão, nono maior país de mundo, e a Ucrânia, maior país da Europa se excluirmos a própria Rússia, euro-asiática. Ao processo que levou à desagregação da União Soviética chamou Vladimir Putin, atual presidente russo, "a maior tragédia geopolítica do século XX". Diz muito esta frase.

Apesar de ter sido um agente do KGB, a nostalgia de Putin não é pelo sistema comunista que essa polícia secreta defendia dentro e fora de fronteiras. O presidente russo ambiciona sim recuperar para o país a condição de grande potência que se desvaneceu há três décadas, independentemente de um arsenal nuclear só igualado pelo dos Estados Unidos, do programa espacial e de vastos recursos energéticos. E isso passa por uma redefinição da esfera de influência russa, que não obriga a alteração de fronteiras mas não as exclui, como já se viu em 2014, com a anexação da Crimeia, habitada por uma maioria de russófonos mas reconhecida como ucraniana.

Putin tem consciência dos limites do poder russo. Por exemplo, nunca deu ouvidos a ultranacionalistas como Vladimir Jirinovski, que defendia a tomada de parcelas de território cazaque. Também aceitou a integração dos países bálticos na NATO e na UE em 2004, durante o seu primeiro período como presidente, e refreou-se de usar como quinta coluna as minorias russas da Estónia e da Letónia, que serão um quarto da população (na Lituânia só 5%). E alguns dos conflitos congelados no antigo espaço soviético, como na Transnístria, cuja população eslava se revoltou contra a Moldávia, são anteriores a Putin no Kremlin.

Mas é por ter essa consciência dos limites do atual poder russo que as ações de Putin costumam ser pormenorizadamente planeadas e executadas, com o sucedido na Crimeia após a deposição de um presidente pró-Moscovo a ser o melhor exemplo. A forma como o Kremlin reagiu à guerra da Geórgia em 2008 contra a Abkazia e a Ossétia do Sul, protegendo e reconhecendo os secessionistas, é outro exemplo. E, claro, não esquecer o modo como esmagou a tentativa de independência da Chechénia, parte da própria Federação Russa.

Nem todos os conflitos na ex-União Soviética envolvem diretamente a Rússia, basta pensar nas recentes escaramuças fronteiriças entre o Quirguistão e o Tajiquistão ou no conflito entre a Arménia e o Azerbaijão, que em 2021 evoluiu para guerra aberta. Mas mesmo nesses casos, Moscovo faz questão de ser, no mínimo, o negociador entre os beligerantes.

Nesta atual tensão entre a NATO e a Rússia sobre o destino da Ucrânia é inevitável que a solução possível passe por um compromisso entre as exigências russas de não ter uma aliança hostil às portas e o direito de cada país a escolher o seu caminho. Tem havido demasiada verbalização pública de posições, esquecendo todos os lados de que as palavras ficam, mesmo sem estarem em tratados. A Rússia relembra a promessa americana ainda nos tempos soviéticos de que depois de integrar a ex-RDA, já parte da Alemanha unificada, a NATO não avançaria nem mais um milímetro para Leste, a Ucrânia recorda que em 2008 lhe foi oferecida a entrada na aliança.

Voltemos à Finlândia (que em 1918 e sobretudo 1940 mostrou ao Kremlin o quanto prezava a independência) e ao que ela nos pode ensinar sobre relações pragmáticas de proximidade com a Rússia. Durante a Guerra Fria conseguiu ser uma democracia de tipo ocidental abdicando da NATO e mantendo o entendimento com o vizinho russo/soviético. Chamou-se a isso finlandização. É um conceito maldito ou pode servir de base para negociações hoje sobre uma complexa Ucrânia que tem vocação ocidental mas não deixa de ser herdeira do Rus de Kiev?

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