Supercalifragilistic expialidocious… Mary Poppins voltou!
"Adeus, Mary Poppins. Não fique longe muito tempo." Com esta saudosa expressão de despedida terminava o filme de 1964, deixando o que podemos hoje entender como uma janela aberta para o regresso da personagem icónica de Julie Andrews. Não se sabia, no entanto, para quando estaria marcado esse regresso, e se viria mesmo a acontecer. Bert, o artista de rua e limpa-chaminés interpretado por Dick van Dyke, é quem pronuncia baixinho essas palavras finais, enquanto, de olhos postos no céu, mira a silhueta da ama "praticamente perfeita" que se afasta no horizonte, com a peculiar sombrinha aberta numa mão e a mala feita de alcatifa na outra... Passados 54 anos, eis que ela volta exatamente do mesmo lugar vaporoso de onde a vimos desaparecer. E se não ganhou uma única ruga, também é verdade que não tem o mesmo rosto.
Já se sabe, em O Regresso de Mary Poppins, é Emily Blunt a atriz que assume, com grande aptidão, o mítico papel de Andrews. Mas não o faz com o sentido de simplesmente replicar a personagem original. Aí reside a chave da sua interpretação: há uma altivez britânica acentuada nesta ama - mais fiel à heroína dos livros de P.L. Travers - que ainda assim deixa vislumbrar trejeitos de doçura (sobretudo na hora de adormecer as crianças). E para que não restem dúvidas em relação às diferenças essenciais entre o clássico assinado por Robert Stevenson e o novo filme de Rob Marshall, importa esclarecer que este não se trata de um remake, mas antes de uma sequela que procura a fidelidade espiritual a um dos maiores sucessos da Disney.
A Londres que encontramos agora já não tem a textura dos magníficos quadros de Peter Ellenshaw, que no original serviam de vistas sobre a cidade da década de 1910. Logo a abrir, somos antes situados na época da Grande Depressão (anos 1930) e, a fazer as vezes de Bert, é Jack (Lin-Manuel Miranda), um iluminador de candeeiros de rua, quem nos conduz até à porta da família Banks. Os dois irmãos do primeiro filme, Jane e Michael, cresceram: ela (Emily Mortimer), solteira, vive empenhada nas causas públicas, fazendo lembrar a mãe sufragista; ele (Ben Whishaw), viúvo, é um pai de três crianças a tentar manter a casa onde cresceu, que está prestes a ser hipotecada pelo banco. O que é que está a faltar a este clã desamparado? A magia de Mary Poppins.
A sua chegada não desilude: ela faz-se anunciar numa rajada de vento que levanta demasiado alto o papagaio do filho mais novo de Michael. Vinda literalmente das nuvens, assenta os pés na terra com a elegância e brevidade de quem tem muito que fazer. "Off we go!", diz (as saudades que tínhamos do seu modo de comunicar...). E a diversão começa logo na hora do banho, que se transforma numa aventura aquática colorida, contrapondo à cena do filme de 1964 em que Andrews canta o tema A Spoonful of Sugar, enquanto transforma a tarefa de arrumar o quarto das crianças num jogo de estalar de dedos.
Esta cena musical não é a única que estabelece um diálogo entre momentos narrativos de ambos os filmes. De facto, quase todo o argumento de O Regresso de Mary Poppins surge como uma construção de correspondências com as personagens e números musicais do clássico. Assim, por exemplo, a cena da visita a Topsy (brilhante Meryl Streep), uma prima tresloucada de Poppins que tem o interior da casa virado do avesso, é a resposta àquela outra do tio que flutuava no teto porque não conseguia parar de rir. E há mais: a dança dos iluminadores de candeeiros, aqui, é o equivalente à coreografia dos limpadores de chaminés no filme de Stevenson; e mesmo a fabulosa sequência do original, Jolly Holiday, em que os atores saltam para o interior de uma pintura e interagem com uma fauna diversa de desenhos animados, tem no novo musical uma notável simetria com o salto para dentro da gravura de uma taça, que de resto é uma das mais criativas e visualmente esplendorosas do filme de Marshall.
Com as possibilidades do digital, que naturalmente não existiam em 1964, O Regresso de Mary Poppins atinge altos patamares enquanto espetáculo de grande ecrã e aventura familiar, conservando, por outro lado, o imaginário e os valores que Walt Disney sempre celebrou. É esse gosto por um certo classicismo, misturado com o toque jazzístico das coreografias do realizador de Chicago, que dá ao filme um duplo apelo, entre a memória cálida do original e a frescura das novas situações musicais. Com apenas um senão: nenhuma das canções (escritas por Marc Shaiman e Scott Wittman) fica no ouvido ou ponta da língua como ficaram a referida A Spoonful of Sugar ou Supercalifragilisticexpialidocious, criações geniais dos irmãos Sherman, que atravessam gerações.
Mas continua a ser a aparência de uma produção da Broadway, associada à fantasia só permitida pelo cinema, que melhor caracteriza este e o primeiro filme. A propósito, vale a pena lembrar que a então debutante Julie Andrews vinha ela própria do ambiente da Broadway. Foi o papel num desses espetáculos - Camelot - que fez Walt Disney reparar na sua vocação para a personagem de Mary Poppins, que acabaria por lhe valer, logo à primeira, um Óscar (no ano seguinte, Música no Coração corresponderia a outra nomeação). Quanto ao Bert de Dick van Dyke, é igualmente uma personagem inesquecível no universo de Mary Poppins. A expressividade e alegria contagiantes, para além dos passos de dança cómicos e desenvoltos, ficaram como a sua imagem de marca. E a maravilha é que tudo isso está de novo à vista neste O Regresso de Mary Poppins, numa curta cena em que o ator de 93 anos (completados no passado dia 13) mostra que ainda tem agilidade nos pés...
Sem reticências, está aí o verdadeiro filme deste Natal, com a magia e encanto que só a Disney sabe proporcionar - aqui no rasto de um dos seus clássicos mais acarinhados de todos os tempos. Precisávamos de um novo sortilégio de Mary Poppins, e ele chegou.
*** Bom