Lança russa em África?

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Quase duas dezenas de países africanos abstiveram-se na última votação na Assembleia-Geral das Nações Unidas de condenar a ação da Rússia na Ucrânia, desta vez a anexação de partes do país invadido em fevereiro. O Burkina Faso não foi um deles, mas não se pense que condenou a Rússia ou que, pelo contrário, a absolveu. Na realidade, a sua delegação nem sequer esteve presente, dada a situação de instabilidade no país, depois de um segundo golpe militar no espaço de oito meses ter ocorrido a 29 de setembro.

Antigo Alto Volta, em 1984 o país foi rebatizado Burkina Faso, criativa soma de uma palavra na língua moré com outra em língua dioula que pode ser traduzida como "Pátria dos Homens Incorruptíveis". O presidente que imaginou esta nova designação, Thomas Sankara, foi pouco depois derrubado e morto e o seu sucessor acabou por governar quase três décadas, Blaise Compaoré, primeiro de forma absoluta, depois introduzindo a cosmética que lhe permitiu afirmar que acompanhava a democratização do continente. Quando finalmente cedeu, em 2014, aos protestos de rua em Ouagadougou e se exilou, sob proteção francesa, deixou um país praticamente tão pobre como o recebeu, um dos dez últimos do Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas. Também é certo que, coincidência ou não, depois da sua saída, o jihadismo entrou em força pelo norte do país, onde a maioria islâmica é mais evidente entre a população.

O golpe de janeiro último foi contra o presidente Roch Kaboré, acusado de ser incapaz de combater os grupos terroristas, uns ligados à Al-Qaeda, outros ao ISIS. O golpe de setembro foi justificado também pela incapacidade de os novos governantes fazerem frente aos grupos extremistas armados. Como notou aqui, no DN, Raúl Braga Pires, a argumentação foi idêntica, mas o líder golpista passou de ser um tenente-coronel a ser um capitão. O que pode ser sinal de uma diferença geracional ou, lançava o analista, de algo mais.

Houve acusações à França de proteger o anterior golpista, Paul-Henri Sandaogo Damiba, derrubado por Ibrahim Traoré. Antiga potência colonial, é comum a França ver-se envolvida de alguma forma nestas mudanças de regime, umas vezes a seu favor, outras não. E a embaixada francesa em Ouagadougou foi mesmo há dias alvo da ira popular. Mas o que faz pensar é a presença de algumas bandeiras russas entre aqueles que se manifestavam. Em tempos pensou-se que a chamada FranceAfrique, rede de interesses franceses em África, estava ameaçada pela China por causa dos financiamentos de infraestruturas, mas a Rússia ganha terreno sobretudo porque há quem a veja como mais eficaz contra o jihadismo. Terá isto também algo a ver com a fortíssima presença africana (apesar da relevância de, agora, Angola ter condenado a Rússia) entre os abstencionistas na votação de dia 12 nas Nações Unidas?

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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