As provocações de dez americanas de língua afiada

A história cultural do século XX deve muito às dez mulheres de língua afiada que a autora Michelle Dean decidiu biografar para mostrar definitivamente que elas também se sentaram à mesa onde se fez a opinião do século XX.
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Michelle Dean não precisava de escrever o livro De Língua Afiada - Mulheres Que Fizeram da Opinião Uma Arte para salvar a imagem de dez mulheres norte-americanas - ou naturalizadas - que marcaram o século XX com as suas opiniões, no entanto nunca é de mais rever esse decálogo de protagonistas femininas que sobressaíram com os seus preceitos ou mandamentos entre a fortaleza masculina. São elas Dorothy Parker, Rebecca West, Hannah Arendt, Mary McCarthy, Susan Sontag, Pauline Kael, Joan Didion, Nora Ephron, Renata Adler e Janet Malcolm.

Para Michelle Dean, pode dizer-se, a razão de ser deste livro reside na seguinte premissa: "Estou convencida de que, mesmo depois do feminismo, continuam a ser necessárias mulheres deste calibre." É o que pretende demonstrar numa dezena dos 14 capítulos do volume, com uma média de 30 páginas, dedicando um a cada uma destas mulheres referidas, e cruzando as dez biografadas em quatro capítulos intercalados em que refere a cumplicidade entre West e Zora Neale Hurston, entre Parker e Arendt, entre Arendt e McCarthy e, por fim, entre Arendt, McCarthy e Hellman.

Entre estes nomes todos, existem alguns mais sonantes do que outros. É o caso de Hannah Arendt e Susan Sontag ou de Mary McCarthy e Dorothy Parker, até de Nora Ephron e Joan Didion... Mas de Janet Malcolm, por exemplo, o deserto é grande em Portugal, país onde não há um único dos seus brilhantes livros traduzidos.

De Língua Afiada apresenta mais de quatro centenas de páginas de investigação sobre um coletivo de ilustres conhecidas nos Estados Unidos a par de um seletivo grupo de outras que são referência na sua área mas menos famosas. Todas mulheres com obra e que a autora analisa com um bom distanciamento - mesmo que se notem certas preferências - e que interliga quando é possível. É o caso de McCarthy quando desabafa sobre Sontag: "É uma imitação de mim."

Michelle Dean escreveu este volume para "demonstrar que as mulheres são tão qualificadas como os homens para discorrer sobre a arte, as ideias e a política". Esta frase será um pouco redutora se quisermos resumir o que é este ensaio, mas serve aos interesses da investigação e de contraponto ao que Michelle Dean considera ter acontecido na história do século XX em relação às mulheres com opinião: "A imagem da literatura norte-americana foi construída com base numa espécie de clube de romancistas masculinos: os Hemingways, os Fitzgeralds, os Roths, os Bellows, os Salingers. Não se tem consciência de as escritoras desse tempo terem feito alguma coisa que mereça ser assinalado."

Michelle Dean sabe que essa não foi a realidade, tanto que considera que se "estas mulheres conseguiram a relevância que tiveram no século passado tornam-se ainda mais dignas de nota". E logo introduz a pecha feminista do seu discurso ao longo de todo o volume, pois, diz, "a afirmação desse talento individual pô-las frequentemente em desacordo com as posições políticas do 'feminismo'. Verdade seja dita, nenhuma delas se sentiu muito confortável no papel de ativista [à exceção de Rebecca West e de Sontag até certa altura]".

Uma das linhas mestras do De Língua Afiada é a intenção da autora em demonstrar que a "inteligência excecional e perspicácia" destas mulheres nem sempre foi respeitada no seu tempo. Razão? "Sexismo obtuso e estupidez pura e simples", diz Dean, mesmo que as respostas destas biografadas a essa questão fosse por norma de "um certo ceticismo inteligente e muitas vezes divertido".

Sobre cada uma faz um veredicto: "Existirá alguma voz que tenha resistido melhor ao tempo do que a de Dorothy Parker? Alguma voz supera a de Hannah Arendt na ética e na política? Como seria a nossa perspetiva cultural sem Sontag? Como veríamos o cinema sem a apreciação da arte popular de Pauline Kael?...

Antes de avançar nos capítulos sobre cada uma das mulheres que escolheu, Michelle Dean avisa que "têm o denominador comum de serem brancas, da classe média e quase todas judias. Num mundo mais justo, uma escritora negra como Zora Neale Hurston teria de ser integrada neste grupo". Não será por acaso que destaca esta "personagem", que irá incluir sempre que possível no cenário da sua escrita.

As muitas recensões estrangeiras a De Língua Afiada - Mulheres Que Fizeram da Opinião Uma Arte confirmam que o volume agora editado pela Quetzal no nosso país vem no tempo certo, tanto que a edição original é recente, apenas de 2018. O elogio é nestes sucessivos retratos biográficos o tom maioritário, mesmo que tenha sido questionada porque não incluiu outras "mulheres de calibre" em vez das escolhidas, ou pelo facto de ter colocado no subtítulo a palavra "opinião" como se fosse uma expressão redentora para as biografadas, até a não escolha de Camille Paglia. A resposta será, claro, a de que o livro é de Michelle Dean e ela é que manda nele, até porque tem a "língua afiada" para o efeito pretendido.

O caso do capítulo sobre Janet Malcolm é exemplar dessa língua afiada, mesmo que se possa dizer que é o mais inofensivo entre todos e que recorre a episódios conflituosos da vida de Malcolm para manter acesa a curiosidade do leitor. Ou de pegar em lutas suas, como o esclarecimento sobre a morte de Sylvia Plath e a culpa de Ted Hughes. O único problema deste último dos primeiros dez capítulos é terminar com uma lengalenga sobre "as expectativas que as mulheres têm em relação às outras", registo que desilude.

No caso do texto sobre Susan Sontag, pode dizer-se que é um dos capítulos mais gossipe em que parece que Michelle Dean tenta retratar a autora como sendo uma pessoa muito pouco normal desde a adolescência. É, talvez, o texto em que a sexualidade e a beleza é mais abordada, desacelerando um pouco na constante procura do feminismo nestas mulheres. Desde logo descreve como Sontag descobre a sexualidade com Harriet Sohmers, luta pela bissexualidade ao longo de vários relacionamentos e lamenta - por interpostas opiniões - que ela nunca se tenha assumido publicamente como bissexual ou lésbica. Quanto à beleza de Sontag, Michelle Dean insiste nela como um fator de sucesso na carreira. Basta ler o seguinte: "Não é exagero afirmar que grande parte do que foi escrito sobre ela tem relação direta com o seu aspeto físico."

Escritora frustrada

Em várias entrevistas, como a concedida a The Cut, Michelle Dean refere que o seu desejo era o de ser escritora mas achou que nunca poderia ganhar a vida deste modo. Daí que tenha dado uso ao curso de advocacia - que aproveita bem ao esgrimir as suas opiniões no livro -, até que em 2013 se interessou por saber "quantas mulheres foram capazes de quebrar o jugo da opinião numa profissão dominada por homens". O que surge, diz, é um livro onde "estas mulheres se tornam famosas quase por acidente e são conhecidas como fazendo parte de uma linha sucessória: Sontag é a próxima Mary McCarthy, por exemplo". Para escrever De Língua Afiada, Michelle Dean conta que consultou muitos jornais e teve "um trabalho insano a procurar o que elas escreveram e foi escrito sobre elas", situação só possível pelo seu grande prazer na investigação. O pior, explica, foi quando chegou a vez de escrever o livro: "A dado momento confirmei que continuava a pesquisar só para evitar dar início ao livro."

Na entrevista que deu na Bookforum, Michelle Dean revela a importância da coscuvilhice entre algumas das biografadas: "As cartas entre Hannah Arendt e Mary McCarthy contêm muita troca de opiniões sobre pessoas que conhecem, mas isso não passa de uma observação da sociedade sobre a qual escrevem. Ao blogue Critical Mass, Michelle Dean faz uma afirmação inesperada: "As mulheres que escolhi para o livro fazem parte de um fenómeno limitado no tempo. A ideia de serem as únicas mulheres que se sentavam à mesa não é bem a realidade do século XX e deixou de ser verdade em 1990."

As entrevistas dadas por Michelle Dean confirmam que De Língua Afiada - Mulheres Que Fizeram da Opinião Uma Arteresulta num dos melhores voyeurismos intelectuais e ninguém dará o seu tempo por perdido quando chegar ao fim. No entanto, o leitor deve ignorar as quatro páginas do posfácio ou lê-lo como prefácio; nada acrescenta às teses que o livro integra em mais de 400 páginas.

Dez frases de Michelle Dean sobre dez mulheres

Sobre Dorothy Parker: "'Quis fazer-me de engraçada', disse ela à TheParis Review em 1957. 'Foi horrível e devia ter sido mais sensata.' Era um pensamento que, à medida que ia obtendo mais sucesso, lhe ocorria amiudadas vezes. As suas farpas tinham feito ricochete e em vez de isso a incitar a produzir melhores textos acabou por fazer que parasse."

Sobre Rebecca West: "West talvez estivesse a exagerar, dado que, no fundo, tinha construído uma carreira literária baseada precisamente no tipo de crítica que ela achava estar a fazer falta."

Sobre Hannah Arendt: Esse ensaio escrito por Arendt aos 37 anos foi o primeiro sinal de que deixara de sentir constrangimentos em criar polémica. Demorara todo este tempo para se convencer da utilidade de escrever para o grande público."

Sobre Mary McCarthy: "A ideia de que a escrita de McCarthy era a malícia em estado puro estava generalizada. A crítica sempre reconheceu nela uma perspicácia acima da média e um estilo burilado que a diferenciava."

Sobre Susan Sontag: "'Se houvesse justiça neste mundo, Susan Sontag devia ser feia ou ter, pelo menos, um aspeto banal', comentava uma crítica do Washington Post. Carlyn Heilbrun, feminista e professora universitária, encarregada pelo The New York Times de entrevistar Sontag, ficou tão impressionada que, em vez de transcrever o diálogo, escreveu um artigo em que não fazia uma única citação - 'Não é possível citá-la porque as suas palavras, cristalizadas fora do contexto que as produziu, tornam-se simplistas e falsas'."

Sobre Pauline Kael: "A exibição dos sentimentos na arte era e ainda é motivo de debate, porque a questão tende a ser vista em função do género. Entre as escritoras, é mesmo algo que tem criado uma espécie de guerra ao longo dos tempos. Sempre houve as que defendem a confissão total de todos os erros e sentimentos como a única maneira honesta de escrever."

Sobre Joan Didion: "Didion voltou à escrita de romances. Uma vez por outra, publicava na Esquire, mas também aí teve dificuldades em impor-se. Em certo sentido, também ela pertencia ao grupo dos tais boys, pois foram sempre homens a dar atenção ao que escrevia e a querer publicá-la. Mas era óbvio que não se enquadrava no regime estabelecido por eles."

Sobre Nora Ephron: "O desprendimento que fizera de Ephron uma jornalista de qualidade permitia-lhe ter também o à-vontade necessário para criticar quem a empregava. Com o passar dos anos, o seu desejo de provocar as pessoas que conhecia, de as atacar, como fizeram Kael, West e todas as suas outras antecessoras, viria a tornar-se uma vantagem profissional."

Sobre Renata Adler: "Adler concluía não haver qualquer razão para confiar nas listas dos livros mais vendidos. Seriam, quando muito, 'um guia útil para corresponder à ansiedade de gente pouco mais do que iletrada'. (...) Foi a primeira vez que Adler partiu da ideia de polémica para fazer polémica, o que, de resto, viria a tornar-se uma marca típica da sua escrita."

Sobre Janet Malcolm: "A maneira de Malcolm pôr as pessoas a exprimir-se, colocando-se numa posição de distância indireta face ao seu discurso, pode ter tanto de subtil como de demolidor e tem raízes na sua história pessoal e na sua personalidade. Foi educada para ser bem-comportada e obediente."

De Língua Afiada - Mulheres Que Fizeram da Opinião Uma Arte

Michelle Dean

Tradução de Helder Moura Pereira

Editora Quetzal

447 páginas

Sai esta sexta-feira, 17

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