Talibãs 2001 e 2021, descubra as diferenças

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Os talibãs de 2021 que conquistaram Cabul não são os mesmos que foram escorraçados de Cabul em 2001. Não porque o seu fundador, o célebre mullah Omar de um só olho, tenha morrido, mas sim porque mesmo a velha guarda sobrevivente aprendeu algumas lições com os acontecimentos de há duas décadas: não se pode hostilizar tudo e todos, nem internamente nem no plano internacional.

A existir um novo Emirado Islâmico do Afeganistão - e mesmo esse nome pode não ser retomado tal e qual -, os pastunes procurarão incluir nas fileiras do regime mais militantes oriundos das outras etnias e obter o reconhecimento de mais do que os três países com que então trocavam embaixadores - Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Para atingir os dois objetivos, essenciais para tornar o atual sucesso militar num sucesso político também, terão de camuflar até certo ponto a sua ideologia extremista, sobretudo no que diz respeito às mulheres. Há quem diga que as meninas afegãs desta vez não serão proibidas de ir à escola, mas terão possibilidade de estudar no máximo até aos 12 anos. A proibição de as mulheres trabalharem continua, essa, a ser aplicada nas regiões que já dominavam antes da retirada americana e é um indício de que muito não se alterará. A liderança talibã terá também de, sem trair a Al-Qaeda, pressionar os jihadistas a terem alguma paciência tática, de modo a não desencadear a ira dos Estados Unidos e outros países, pois a luta contra o terrorismo tem muito mais potencial de apoio hoje na opinião pública americana do que a defesa da democracia e dos direitos das mulheres e das minorias.

As palavras do secretário de Estado americano Antony Blinken de que desde sempre a prioridade em intervir no Afeganistão era punir os responsáveis pelos atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gémeas e o Pentágono soou a meia verdade mas serviu para mostrar onde está claramente, por agora, a linha vermelha traçada pelo presidente Joe Biden, que mesmo assim pode sofrer alterações dado o frenesim de acontecimentos.

O talibã de hoje está muito mais preparado para perceber o mundo do que há 20 anos. Por exemplo, tiveram lições intensivas de negociação quando, via Qatar, começaram a dialogar com os Estados Unidos. E apesar de esses primeiros contactos com a administração americana terem ocorrido num tempo de presidente republicano tal como os ataques de há duas décadas, Donald Trump pouco ou nada tem que ver com George W. Bush. Trump queria uma América fechada em si, George W. Bush acreditava numa América missionária da democracia. Curiosamente, o homem-chave tanto na preparação do pós-talibãs em 2001 como no seu regresso em 2021 foi Zalmay Khalilzad, diplomata americano nascido no Afeganistão, mas sempre na presunção de que haveria uma partilha de poder e não o triunfo dos "estudantes de religião" sobre o governo de Cabul. Biden, que apoiou a guerra de Bush enquanto senador, tornou-se depois um crítico da sua continuação e aproveitou o processo iniciado por Trump. Para já, as críticas vêm mais de fora do que de dentro.

Oficialmente o líder dos talibãs é Haibatullah Akhundzada, mas o mullah Baradar, que foi número dois de Omar, pode ter um papel decisivo na definição do nível de pragmatismo do futuro governo islâmico. Libertado de uma prisão paquistanesa por pressão dos Estados Unidos para participar nas negociações em Doha, patrocinadas pelo Qatar, o mullah Baradar ganhou mundo e tem feito declarações conciliadoras com os opositores afegãos e procurado estabelecer pontes com as potências, para contrabalançar a influência americana, incluindo a China e até a Rússia, herdeira dessa União Soviética que chegou a ser o pior dos inimigos para os fundamentalistas islâmicos afegãos de todas as tendências.

Que o antigo presidente Hamid Karzai se mantenha em Cabul (ao contrário do presidente Ashraf Ghani, que fugiu) reforça a ideia de que há negociações de bastidores entre afegãos que podem moldar o estilo de governação talibã. Muito estará ainda em aberto, mesmo que a multidão que tenta fugir do país, compreensivelmente, não acredite nisso.

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