À medida que o primeiro dia da crise energética se aproximava, várias dúvidas assaltavam o espírito de todos os portugueses. Os canais de notícias continuariam a ter meios para fazer directos em estações de serviço semidesertas? Os circuitos de distribuição de vox pop seriam afectados? A língua portuguesa resistiria ao ataque concertado de dezenas de repórteres exaustos - a misturar metáforas, mutilar lugares-comuns ou a começar cada frase com a palavra "efectivamente"?."A greve bate com estrondo à porta do país", anunciou a SIC na noite de domingo, em plena contagem decrescente. "Faltam nesta altura pouco menos de quatro horas... vamos então tomar o pulso a vários pontos nevrálgicos do país." Um ponto nevrálgico não é necessariamente o melhor sítio para medir a pulsação, mas Rodrigo Guedes de Carvalho referia-se apenas a um périplo por várias bombas de gasolina, onde repórteres de exteriores se encontravam preparados para relatar circunstâncias de transtornante normalidade. "Não houve grandes problemas neste domingo", ouvia-se de Leiria. "No Porto... a mesma situação... os postos foram abastecidos na sexta-feira... e ainda não faltou combustível." Alguma confiança foi restabelecida quando chegou a vez do repórter destacado para o Algarve, mas o ânimo durou pouco. "Aqui no Algarve, onde estão novecentas mil pessoas, podia esperar-se uma maior afluência... mas não... tudo tranquilo nas bombas. As autoridades nem sequer activaram o plano de emergência distrital." Um porta-voz da Protecção Civil tratou de explicar o que poderia alterar este quadro de normalidade. "Se os pressupostos de normalidade se alterarem... isto é, se a situação sofrer... alguma alteração." O repórter em Viseu deixava a mesma nota de desolação temperada com esperança: "Como se pode ver... clima de estabilidade... tudo calmo... a partir de amanhã é que tudo pode ser diferente." Foi preciso chegar a Castelo Branco para que os serviços mínimos fossem cumpridos: perante um repórter com o depósito já na reserva, um invisível camião-cisterna apareceu de surpresa e despejou-lhe na boca cinco mil litros de flanela verbal em estado líquido: "Ora, para grandes males, grandes remédios. O susto que ditava que pudesse estar no horizonte essa secura nos depósitos, esse susto chegou na sexta-feira, trouxe uma corrida aos postos de abastecimento. Essa corrida está nesta altura congelada, mas fez que neste posto os níveis chegassem a índices... preocupantes.".De regresso ao estúdio, Rodrigo Guedes de Carvalho actualizou a contagem decrescente e testou uma nova ligação ao Algarve, oleando os índices dos níveis dos pistões retóricos de um bronzeadíssimo Marques Mendes: "Estamos a menos de quatro horas do início de uma greve histórica e este vai ser basicamente o único combustível do seu comentário." Marques Mendes respeitou os pressupostos de normalidade e cumpriu com excelência a sua função habitual, explicando como cada um dos intervenientes "ganhou" ou "perdeu, ou como "podia ter saído por cima", ou "usado os seus trunfos", ou como "caíu na esparrela", ou "marcou pontos", e aquilo que a "opinião pública" achava sobre tudo isto..No Opinião Pública do dia seguinte também se auscultava a opinião pública. "Vamos aqui ouvir algumas... tentar recolher aqui o contributo deste utente... vamos aqui chegar à fala..." Após vários ensaios inconclusivos, um microfone conseguiu aproximar-se de uma viatura com a janela aberta. "Vamos aqui tentar perceber... Bom dia... o que é que o levou a enfrentar esta greve aqui, a esta hora da manhã?" "Vim atestar o depósito." "Obrigado. Vamos agora tentar chegar à fala aqui com mais utentes...".No estúdio, o conflito ia sendo empolgantemente resumido: quem recusa "as culpas no cartório", quem "coloca a fasquia noutro extremo", quem "promete não arredar pé", quem "fez soar os alarmes", quem levou "o braço-de-ferro a subir de tom". Noutros pulsantes pontos nevrálgicos, pessoas eram confrontadas com "afirmações" e "declarações". "O primeiro-ministro disse x. Como é que vê essas afirmações?". "Pardal Henriques disse y. Como é que vê essas declarações?" As declarações de Pardal Henriques mereciam especial atenção. Na quarta-feira, um repórter da CMTV junto à refinaria de Sines abordou com compreensível hesitação as suas propriedades sobrenaturais: "Registámos um antes e um depois das declarações de Pardal Henriques. Até às nove horas, os camiões-cisterna que aqui entravam por estas portas seriam de cinco em cinco ou de dez em dez minutos, parecia um carrossel, um comboio de camiões-cisterna... O que é certo é que essa cadência tem aumentado, e agora de meia em meia hora ou de hora a hora aparece um camião-cisterna. Não sei se podemos ter essa... analogia... isto é, se é causa e efeito... isto é, se depois das declarações de Pardal Henriques... ou se as declações de Pardal Henriques terá... terão sido esse o mote para que a cadência tivesse aumentado. O que é certo é que isso aconteceu e nós que estamos no local registámos precisamente isso.".Esta fascinante especulação foi interrompida por um "Alerta CM", informando que o Exército colocara um atrelado-cisterna em Ourique. O jornalista no local esclareceu (usando o vocábulo oficial destes esclarecimentos: "efectivamente") que o Exército efectivamente "posicionara" em Ourique, "precisamente", o atrelado-cisterna que estávamos a ver nas imagens, atrelado-cisterna esse que era efectivamente "constituído por militares do Exército". O atrelado-cisterna visível nas imagens parecia constituído por materiais mais prosaicos (metal, borracha, etc.), o que não deixa de ser um tributo às técnicas de camuflagem dos corajosos militares portugueses. "O objectivo deste atrelado-cisterna", prosseguiu o esclarecimento, "este... atrelado-cisterna aqui... posicionado... é garantir o abastecimento de combustível em caso de... necessidade... ou emergência...".De regresso ao estúdio, os serviços mínimos de "efectivamente" continuavam a ser cumpridos, reforçados com algumas reservas estratégicas de "designadamente": "Pensa-se nesta altura que vão estar efectivamente presentes na reunião que designadamente..." Variadíssimos braços-de-ferro continuavam a subir de tom, numa ameaça aos níveis dos índices. "Deixe-me então... para os espectadores lá em casa perceberem... está a insinuar...ou a acusar Pardal Henriques de ter acusado...ou insinuado que...".No exterior, os pressupostos de normalidade continuavam precários, embora nem sempre fosse possível ilustrar essa precariedade com imagens: "Os funcionários das bombas vieram aqui pôr em algumas das bombas uns papéis a dizer que estão fora de serviço... infelizmente não conseguimos mostrar os papéis porque... estão carros agora à nossa frente... a utilizar as outras bombas... as que estão a funcionar.".Ao quinto dia de greve, e aos primeiros rumores de que o tom do braço-de-ferro estava a mudar de fasquia, o principal motivo de interesse era saber quem iria ganhar a corrida à primeira utilização de "fumo branco" numa reportagem, modalidade triunfantemente sabotada pela repórter da SIC Notícias em Leça: "Em Leça da Palmeira há fumo branco... mas não está relacionado com o processo negocial, é fumo branco porque se preparam para assar aqui umas sardinhas.".Pouco depois, o último sindicato resistente comunica a suspensão da greve. Perto do fumo branco e das sardinhas mortas, foi feita a autópsia possível: "Como é que vê esta decisão do vosso sindicato, uma decisão que aliás é vossa?... Vê esta situação como que vocês já estão a ceder, para a situação chegar a bom porto?" "Eu acho que isto é tudo uma questão de estratégia." Os níveis dos índices estavam efectivamente a descer de tom, a caminho da fasquia da estabilidade..Escreve de acordo com a antiga ortografia.