Pérez-Reverte: "Tanto me faz que Franco seja cremado ou que façam croquetes com ele"

O escritor Arturo Pérez-Reverte escreveu a segunda aventura de Falcó, que se passa na Guerra Civil Espanhola. Um mercenário que apoia os franquistas e é mulherengo. Um romance em sentido contrário ao dos tempos.

Na última entrevista que deu ao DN a propósito do seu romance Homens Bons, Arturo Pérez-Reverte falou com alguma tristeza da Lisboa que desaparecia engolida pelos magotes de turistas. Uma situação que descobrira ao passear nos dias anteriores pelo Miradouro de Santa Luzia, pelos bairros populares, pela Calçada da Figueirinha... Agora, de volta à capital portuguesa para apresentar o segundo volume da série Falcó, Eva, um policial negro ambientado no tempo da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) percebe-se a razão desses passeios: todo o itinerário que relatara serve de cenário ao primeiro capítulo do segundo livro. Até vai mostrar a mesa do restaurante do Hotel Avenida Palace onde em Eva o agente da polícia política portuguesa toma o pequeno-almoço com o seu herói depois de este ter "aviado" dois perseguidores.

Reverte tirou então fotografias, fez anotações e sublinhou mapas: "Mais do que escrever um romance, dá-me prazer imaginá-lo e documentá-lo. Como estar aqui neste hotel a olhar para a rua como fazem as duas personagens logo nas primeiras páginas." O escritor espanhol vai mais longe sobre o seu interesse na história de Portugal: "Quero fazer mais coisas com Portugal, pois há muitos acontecimentos que dariam bons livros: o atentado contra Salazar e a espionagem durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Até acho estranho que não haja uma boa literatura policial portuguesa porque não falta matéria-prima." Lisboa como cenário parece ser inesgotável para Reverte e após a conversa iria mais uma vez almoçar ao restaurante Martinho da Arcada, que surge também nesta segunda aventura de Falcó: "É o meu restaurante desde há 30 anos e quero oferecer-lhes o livro."

Arturo Pérez-Reverte nega que esta sua nova série possa ser classificada como romance histórico e define-o como "um romance policial negro de espiões situado nos anos 1930-40 e com uma abordagem nova. Não se pode voltar a escrever o Grande Gatsby e Falcó é uma ideia original que, boa ou má, nunca foi tentada." Descreve Falcó como uma espécie de Cary Grant e nunca ao estilo de Humphrey Bogart: "É elegante, bonito, tem classe e é bem-educado." Quanto a passar Falcó para o cinema, como já lhe foi pedido, ainda está longe: "Cada leitor faz a sua própria imagem de Falcó. Quero que continue a ser assim por mais algum tempo." Antes de terminar, Reverte aceita sossegar os leitores das suas duas séries: Alatriste e Falcó. O primeiro, garante, "sabemos que morre num próximo livro, mas o que já escrevi ainda está longe do último volume; o segundo, "vai acabar a viver em Buenos Aires, para onde se mudará aos 80 anos [tem 37 agora]". Ou seja, qualquer uma das séries de Reverte ainda tem pano para mangas.

A primeira frase do romance Eva é "Não quero que me matem esta noite." Foi para começar a sério?

Não é por acaso, é que enquanto repórter de guerra pensei muitas vezes isso mesmo: não quero que me matem. É horrível a sensação de saber que tudo pode acabar no segundo a seguir e Falcó estava nessa situação em Lisboa. Por outro lado, é verdade que um romance deve começar por chamar a atenção do leitor e creio que essa é uma frase adequada.

Muitos romances falham no fim. Como evita isso?

Os meus romances surgem após ter planeado a sua estrutura com muito cuidado. Sei sempre qual vai ser o final, por isso é como caminhar até um lugar que já se conhece e só preciso de criar uma unidade que me permita chegar ao ponto que desejo. Sou um romancista profissional, não um artista, e olho para o que faço com toda a frieza: o final faz parte desse processo. Este é um trabalho que me leva todos os dias várias horas, o mesmo que acontece a quem trabalha numa oficina ou num escritório.

Quando se assume como profissional não receia que essa frieza retire alguma sensibilidade à escrita?

Os romances não se fazem com o coração ou o estômago mas com a cabeça. Isso do escritor visceral que escreve porque se não o fizer é uma tragédia, que ao mesmo tempo é uma catarse e que faz das tripas coração, é uma situação que sempre me deixou muito desconfiado. Há génios assim, claro, Baudelaire é esse tipo de artista, mas prefiro escritores sistemáticos, frios e profissionais como Balzac ou Dumas. Eu sou este género de autor.

Falcó só tem três coisas: esperteza, sexo e...

... e crueldade...

... É o que precisa para sobreviver e agarrar o leitor?

Para sobreviver, sim. Falcó é um lobo, o tipo de animal que para sobreviver num meio hostil precisa de ser inteligente e, além disso, como é um homem bonito, vive um mundo de aventura. A vida é isso para ele. A minha vida enquanto jornalista faz-me desconfiar dos heróis com causas nobres porque são perigosos, fanáticos e pouco constantes. Quando o passar da vida atua sobre a causa, a pessoa acaba a lutar contra o que defendeu no passado. O mercenário de si mesmo é aquele que ama a aventura pela aventura, as mulheres pelas mulheres e o risco pelo risco. Falcó não muda e é mais coerente porque os seus impulsos estão livres dos condicionamentos externos. Por isso aprecio Falcó, por ele ser um filho da puta honrado.

Diz que "é um rapaz de boas famílias em versão descarrilada". Não receia a reação dos leitores sobre uma personagem tão fora de moda em 2018?

Pelo contrário, é deliberado. Estou num momento em que vejo toda a gente com um cuidado extremo por causa do feminismo, da proteção aos animais, com atores bem-comportados que não fumam e não dizem palavrões! Num momento como este, em que tudo é correto, era um desafio conseguir que o leitor aceitasse uma personagem oposta a estas regras. Porque essas pessoas existem na realidade enquanto na ficção elas acabaram, ou seja, o desafio era recuperar para os leitores um herói politicamente incorreto.

Não teme a apreciação das suas leitoras habituais?

Não mesmo, o que vejo é que estão a gostar muito e em Espanha já vendeu quase 300 mil exemplares. O leitor não é parvo, porque compreende que ninguém está a dizer que Falcó é um herói recomendável. Nem sempre a virtude é interessante, até porque se aprende mais com a transgressão e a maldade do que com outras situações. Eu aprendi mais com o mal do que com o bem e, narrativamente, um protagonista malvado é muito mais poderoso do que um bondoso.

Então, foi deliberado e para chocar por estar cansado de homens bons?

Não, eu já escrevi sete volumes do Capitão Alatriste, que é um herói cansado, que teve fé em causas patrióticas, mas a vida destruiu-lhe a sua confiança. Falcó nunca teve essas qualidades e o meu desejo era pôr em oposição dois heróis: um moralmente admirável e outro moralmente repulsivo. O desafio era o de que o leitor aceitasse uma personagem como Falcó: misógino, mulherengo, machista, violento e cruel, mesmo que para compensar tivesse bom aspeto. Resultou, pelo que se vê.

Se estivesse no princípio da carreira faria o mesmo?

Não sei, mas satisfaz-me que Falcó seja tão lido. E tem mais uma razão, é bom que o escritor não se repita. Um escritor profissional como eu, que escreve romances há trinta anos, não pode repetir os mesmos clichés. É necessário explorar territórios novos e esta série é isso mesmo, tanto que nunca escrevi sobre esta temática. Em vez de me repetir, estava perante a descoberta, e é isso que faz um autor sentir-se vivo. A repetição da mesma fórmula só acontece a um escritor que já está morto.

Neste romance passado durante a Guerra Civil Espanhola só Falcó não é fanático?

A personagem Eva, por exemplo, é uma fanática e por essa razão coloquei os dois em confronto. Eva é a comunista que acredita na revolução e está disposta a sacrificar-se pelo futuro da humanidade - ele não é nada disso. Queria ter esse contraste no livro porque conheci fanáticos e mercenários e desejava mostrar o quão diferentes eles são. Ambos podem ser cruéis, no entanto o fanático perde a humanidade - tal como um católico, um comunista, um muçulmano ou um ecologista perdem a humanidade se forem fanáticos. Já o mercenário mantém-se sempre perto da humanidade, até na maldade. Há um exemplo que dou sempre: quando estava em Angola a cobrir a guerrilha da FNLA houve um ataque do governo e eu estava com um português chamado Filipe, que era um antigo militar dos Comandos da Marinha e agora liderava uma unidade de negros angolanos. Quando aconteceu o ataque houve que retirar e eu disse a Filipe: vem no meu carro. E o que é que ele me respondeu: "Não, quero ficar com os meus pretos." E ficou, porque era um mercenário em vez de um fanático. As linhas que separam o bem e o mal são muito pouco claras, é o que posso dizer ao fim de muitas guerras em que estive como repórter.

E as linhas da Igreja que tanto critica neste livro?

Eu respeito a Igreja culturalmente, porque a Europa deve-lhe muito - pois formou-se no cristianismo - e é fundamental para nos compreendermos enquanto europeus. Ou seja, a religião católica deveria estudar-se pelo seu lado cultural e não religioso. Sou inimigo da Igreja enquanto instituição religiosa, enquanto cultural sou partidário. Explico: boa parte do atraso, da dor e do dano que os países meridionais como a Itália, Espanha e Portugal sofreram foi devido ao peso terrível da Igreja entre os séculos XVI e XVIII. Impediram a Europa de existir de verdade e hoje estamos a pagar um preço muito caro por isso; por isso o meu ódio à Igreja no sentido ideológico é muito grande, noutro sentido a minha admiração pela Igreja enquanto fator cultural é enorme. Creio que atualmente a religião deveria ter apenas um estatuto cultural.

Como vê este ataque ao Papa por causa da pedofilia?

Essa é uma polémica que me interessa pouco e que nem sigo com atenção, além de que não tem que ver com este romance, mas vamos lá. Creio que é impossível que a Igreja se adeque à modernidade por ser incompatível. Uma Igreja moderna é impossível porque se todos os mistérios deixarem de o ser pouco dirá aos homens. A Igreja só se mantém se for algo distante e oculto, como acontece com o sacerdote egípcio, romano, asteca e o do oráculo de Delfos. O sacerdote é o meio que interessa às pessoas incultas por ser o intermediário, mas hoje com a internet o ser humano leva no bolso nove mil anos de cultura e pode saber tudo o que quer a qualquer momento. A Igreja perdeu a sua função!

Escreveu uma História da Guerra Civil para Jovens por ter encontrado muitos erros em textos que leu. Os mais novos ainda estão interessados nesse conflito?

Nada, isso só interessa aos políticos espanhóis porque lhes faltam ideias e intelectualmente são pequenos. É uma geração de políticos medíocres, da direita à esquerda, porque carecem de formação e recorrem a clichés fáceis para manipular o eleitor. A guerra civil é para eles um bom capital ideológico, pois os espanhóis continuam um povo ignorante e é fácil manobrá-los com dois tweets sobre Franco.

Concorda com a exumação de Franco?

Perguntaram-me a opinião e respondi que Franco deixou de me interessar há 40 anos. Tanto me faz que seja cremado ou que façam croquetes dele! Tanto me faz que o tirem de lá ou não! Tenho coisas mais importantes para ocupar a cabeça.

Todas as instituições espanholas estão em perigo...

A Europa está toda em revisão e os impérios acabam sempre por cair e morrer. Foi sempre assim: o português, o espanhol ou o russo. O Ocidente está em decadência; pode aguentar mais dois ou três séculos até chegar um mundo diferente. O Ocidente de Platão, Aristóteles, Homero, Dante ou Camões foi à merda e pouco a pouco vai morrendo. Todas estas organizações neofascistas na Europa ou a monarquia espanhola em crise fazem parte do processo de degradação de um sistema moribundo. É como ver o império americano nas mãos de um imbecil e de um animal como Trump.

O cenário de Eva é a Guerra Civil. Já não é um trauma?

Para mim não. Nem para ninguém, mas estes filhos da puta [os políticos] estão a fazer reviver a Guerra Civil, da qual já ninguém da minha geração falava.

O seu colega Fernando Aramburu escreveu Pátria, sobre o terror da ETA. É uma questão fechada?

A ETA, tal como a Guerra Civil, já não conta para a vida política e social espanhola. Agora, a ETA é mais literária do que política e o livro de Aramburu pôs um ponto final nessa história. Ele disse tudo.

O seu Falcó não se torna insultuoso por estar tão a favor de Franco e contra os republicanos?

Foi deliberado. Os heróis da Guerra Civil são todos republicanos, mesmo que Espanha tenha ficado dividida ao meio. O meu pai e o meu tio eram de boas famílias e lutaram com os republicanos. O meu sogro era de esquerda e comunista e lutou por Franco. Esta era a hora para eu fazer uma provocação e criar um herói que não é republicano, tão-pouco um franquista a sério. É mais um mercenário que está do lado dos franquistas.

Se tivesse vivido naquela época de que lado estaria?

Quando tinha 25,30 anos teria tomado partido pelos republicanos, agora com a minha idade o que faria era ir-me embora de Espanha. Não tomaria partido pelos franquistas nem pelos republicanos. Acho que já conheço bem o ser humano e houve muitas atrocidades entre os republicanos! Eu já fiz sete guerras civis como jornalista e sei bem o que se passa por lá. O ser humano fez-me ver que não há diferenças entre ninguém.

Está desiludido com o ser humano?

Sim, o ser humano é sempre o mesmo leve uma camisa azul ou o punho ao alto e contamina qualquer causa, boa ou má. É um animal muito perigoso. Não tenho simpatia por ele e quando há uma grande catástrofe e morrem cinco mil pessoas, o que digo é que havia quatro mil que mereciam morrer. Há seres humanos que ainda podem salvar-se, mas a humanidade desgosta-me. No entanto, existe gente por quem daria a vida, o mesmo não faria pela humanidade. Nisso estava de acordo com Saramago, sou também um pessimista.

Malraux e Hemingway ficaram do lado dos republicanos e eram seus propagandistas...

Eles acreditavam no que faziam, mas não é o mesmo ir a um lugar como turista da guerra e estar a vivê-la. Durante 21 anos estive em países em guerra e sei como se vê diferente a realidade.

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