Nós e o salário mínimo

O Estado em Portugal é demasiadas vezes um problema, mas os nossos problemas estão muito para lá dele e o facto é que somos nós que corremos para ele nos ajudar e não os conseguimos resolver como comunidade.
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Os debates sobre o salário mínimo são sempre um momento que nos envergonha. Uma comunidade que tem mais de 750 mil cidadãos que trabalham 40 horas por semana e trazem 600 euros por mês para casa está muitíssimo doente. Uma comunidade em que um quinto das pessoas que trabalham não conseguem através da sua atividade profissional garantir uma vida decente falha redondamente.

O salário mínimo nasceu da consciência de que o trabalho é central para as pessoas, é grande parte da nossa vida, define o nosso papel na comunidade; que o trabalho de cada um não é um como um hectare de terra ou um maço de notas, descartável ou utilizável. Quem vende a força do seu trabalho tem de ter uma vida digna. Não, não há dignidade na pobreza e, no entanto, vivemos num país em que trabalhar não significa não ser pobre.

A crise social que vivemos tem também muito que ver com os problemas que a questão trabalho tem levantado. A crescente desregulamentação, a assunção do trabalho como algo estruturalmente precário, a perda de força dos sindicatos e, mais que tudo, o império da economia sobre a política. A noção da economia como um fim em si mesmo e não mero instrumento. Desta forma, as pessoas são tiradas do âmago das decisões que importam para a comunidade e passam a ser uma espécie de terceiras partes de um processo que apenas vagamente lhes diz respeito.
A realidade portuguesa sofre também com todos estes problemas, claro está, mas tem especificidades próprias.

Dir-se-ia que é normal que num país pobre a discussão sobre o salário mínimo seja tão relevante. Sem dúvida. Como é normal que a questão dos outros salários seja tão importante. Os nossos salários são baixos e se o mínimo é o que é, o médio é também muito baixo: 944 euros (dados de abril de 2019) - a diferença entre os salários mais baixos e mais altos é gigantesca, mas isso, apesar de vir a propósito desta conversa, merece outra reflexão. Mas se provas mais fossem precisas do gigantesco papel do Estado no nosso país, da fragilidade das nossas estruturas intermédias e da fraca gestão das nossas empresas, o tipo de debate que surge nestas alturas deixa tudo escancarado.

Primeiro. É interessante ver a forma distendida como os patrões acolhem os aumentos do salário mínimo. Dir-se-ia que a razão para que tanta gente ganhe esses salários de miséria era a impossibilidade de se lhes pagar mais, mas claramente para os patrões não é essa a causa ou a reação seria muitíssimo mais violenta. Ou seja, os nossos empresários pagam o menos possível e esperam que o Estado lhes imponha que têm de pagar mais.

Isto diz muito sobre a qualidade da gestão das nossas empresas. Incentivar uma melhor qualidade de trabalho, premiar os melhores, aumentar as condições de bom desempenho, são palavras vãs para muitos, muitos mesmo, dos nossos patrões.

Não será preciso explicar que uma empresa que só sobrevive pagando este tipo de salários está condenada, mas parece ficar claro que nem é disso que se está a falar. Ao aumento - felizmente significativo - do salário mínimo nos últimos anos não correspondeu uma subida de falências, bem pelo contrário. Mas, se assim fosse ou se um aumento dos salários a isso levasse, seria mais uma prova de um péssimo funcionamento da nossa economia.

Quando se fala de produtividade - mal endémico do nosso país - não se pode deixar de falar da maneira como o Estado atrofia as empresas e da pequenez do nosso mercado, mas esquece-se demasiadas vezes o maior mal: a baixíssima qualidade da nossa gestão e dos nossos empresários. Pois é, a história de que os nossos trabalhadores são bons lá fora e maus aqui tem razões bem claras, mas que são poucas vezes lembradas - os estudos académicos são pouco divulgados e, já se sabe, ai de quem critique as empresas... O facto é que salários baixos provocam baixas produtividades e apenas criam uma ilusão de competitividade. Quem compete baseado no preço está condenado à falência mesmo que não o saiba.

Segundo. A história que se ouve sempre nestas alturas de que a pressão no salário mínimo fará aumentar o salário médio. Infelizmente, não é verdade. Melhor, só muito marginalmente. Mais uma prova da dependência do papel do Estado. Ou seja, as empresas encaixam com normalidade o crescimento do salário mínimo, mas isso não tem mais consequências. Aliás, como isso já é evidente ouve-se já pedidos sobre ações tendentes à imposição do crescimento dos salários médios, como também se pedem medidas para as empresas premiarem os trabalhadores com mais qualificações. Só faltava mesmo esta: o Estado impor salários médios. Quem sabe, definir os salários de todos os trabalhadores.

Terceiro. Como parece evidente, o grosso das nossas empresas só parece reagir a imposições estatais. E o facto é que parece que só este tem capacidade de mudar as coisas. Os sindicatos perderam toda a força negocial que tinham. Resta-lhes os trabalhadores do Estado, onde o seu papel é confortável. Só apenas 8,3% (dados de 2016) dos trabalhadores do setor privado são sindicalizados. O desequilíbrio entre o poder das empresas e o dos trabalhadores é a condição natural. Em traços muito simples, para corrigir essa diferenciação existe a legislação laboral. Mas sem sindicatos ou comissões de trabalhadores fortes o poder inclina-se todo para os patrões e não há legislação que o consiga equilibrar. Não é estranho que em países como, por exemplo, a Suécia não exista salário mínimo, não é preciso: cerca de 80% dos trabalhadores estão sindicalizados.

Patrões sem noção de que salários baixos não ajudam em nada as suas empresas e incapacidade de negociação dos trabalhadores resultaria sempre em salários baixos - sem nunca esquecer sermos um país pobre.

O Estado em Portugal é demasiadas vezes um problema, mas os nossos problemas estão muito para lá dele e o facto é que somos nós que corremos para ele nos ajudar e não os conseguimos resolver como comunidade.

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