Quase três anos após o início dos trabalhos, a Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas entra nesta semana na reta final, com as votações em comissão. Mas as grandes linhas já estão definidas - há novos cargos abrangidos pela obrigação de declarar interesses e património, vai haver uma nova entidade na alçada do Tribunal Constitucional, vai ser muito mais difícil acumular o cargo de deputado com funções privadas. Já a regulamentação do lobbying está longe de ter aprovação garantida. Eis o que está em cima da mesa..IMPEDIMENTOS.É a alteração de maior alcance feita ao Estatuto dos Deputados - a manter-se a votação inicial (ainda de caráter indicativo), a Assembleia da República vai apertar (e muito) o cerco aos deputados advogados, praticamente inviabilizando a acumulação de funções. O articulado estabelece que fica vedado aos parlamentares "prestar serviços, exercer funções como consultor, emitir pareceres ou exercer o patrocínio judiciário nos processos, em qualquer foro, a favor ou contra o Estado ou quaisquer outros entes públicos". Atualmente, os deputados já estão impedidos de litigar contra o Estado, mas a situação inversa não está interdita..A limitação que agora está prevista não se cinge aos deputados a título individual, estendendo-se às sociedades civis ou comerciais que integrem deputados, e que desta forma também ficam impedidas de prestar serviços a entidades públicas. A proposta diz que a mesma limitação é "aplicável às sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais, independentemente do valor da participação social". Além dos advogados, ficam abrangidas outras profissões liberais. Um arquiteto, por exemplo, deixa de poder trabalhar em ateliês que trabalhem com câmaras. Contabilistas e revisores oficiais de contas também ficam impedidos de acumular atividade profissional com o exercício do cargo de deputado. Pedro Delgado Alves, Pedro Filipe Soares e Jorge Machado, coordenadores de PS, BE e PCP, confirmaram ao DN que esta inibição é para ficar na versão final da lei. PSD e CDS são contra. "É uma funcionalização da atividade política", diz o deputado social-democrata Álvaro Batista, membro da Comissão de Transparência. Vânia Dias da Silva, coordenadora do CDS, defende que estas medidas vão "transformar os deputados em profissionais da política", com prejuízo para a qualidade do Parlamento ..INCOMPATIBILIDADES. As incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos sofrem alterações substanciais. A começar pelo universo abrangido, que além dos políticos abarca também os gestores públicos, de empresas participadas pelo Estado (quando sejam designados por este), administradores de entidades públicas independentes, autarcas e dirigentes dos serviços das câmaras municipais (a lista ainda deverá sofrer alterações, mas o princípio do alargamento é para manter). A obrigação estende-se ainda aos candidatos a Presidente da República. E aos juízes do Tribunal Constitucional, magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e Provedor de Justiça. O que é esta obrigação declarativa? É uma declaração única de rendimentos, património, incompatibilidades e impedimentos, que os visados terão de entregar na Entidade para a Transparência (um organismo independente, ainda por criar, que funcionará na esfera do Tribunal Constitucional) no prazo de 60 dias após o início de funções. Esta declaração tem de indicar os rendimentos brutos e a sua fonte, e todo o património, do imobiliário a participações em sociedades, automóveis, barcos, aeronaves, carteiras de títulos, contas bancárias a prazo e à ordem. O passivo (empréstimos) também tem de ser declarado, seja a uma instituição bancária, ao Estado ou a particulares, no país ou no estrangeiro. Tal como a "indicação de cargos, funções e atividades, públicas e privadas, exercidas nos últimos três anos". De menção obrigatória é também a identificação de qualquer situação que implique pagamentos do Estado (subsídios ou apoio financeiro), seja ao próprio, ao cônjuge ou unido de facto..Esta declaração tem de ser apresentada no prazo de 60 dias após o início de funções, atualizada sempre que houver uma alteração patrimonial num montante superior a 30 mil euros (50 salários mínimos) e novamente após cessar funções, também num prazo de dois meses. E uma última vez, três anos após o fim do exercício do cargo. A declaração será de acesso público, mas com limites, a começar pelo óbvio, os dados pessoais como a morada. Quanto aos dados restantes, os partidos ainda mantêm divergências significativas..Em caso de não apresentação das declarações, se a situação se mantiver após a notificação do visado, a sanção passa pela perda de mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos (ficam excecionados o Presidente da República, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República). Caso a ausência se reporte ao final do mandato ou aos três anos sobre o fim das funções, o visado ficará impedido de desempenhar qualquer cargo sujeito à apresentação da declaração por um período de um a cinco anos. Mas não só: a não apresentação da declaração será punida como crime de desobediência qualificada, com uma pena de prisão até três anos. A mesma moldura será aplicada a quem omitir, com "intenção de os ocultar", bens patrimoniais ou rendimentos superiores a 30 mil euros..É neste ponto que o projeto que está em cima da mesa abre espaço à penalização do enriquecimento ilícito, não em sede criminal (uma discussão que já leva anos no Parlamento), mas em sede fiscal. Os acréscimos patrimoniais não justificados, sendo de valor superior a 30 mil euros, "são tributados para efeitos de IRS à taxa especial de 80%"..PRENDAS E CÓDIGO DE CONDUTA. No futuro, as ofertas recebidas pelos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos terão de ser registadas. Os bens e serviços que tenham um valor superior a 150 euros são "obrigatoriamente apresentados" a um organismo que terá de ser definido num código de conduta a elaborar por cada entidade (por exemplo, o Parlamento), que decidirá também o destino das ofertas sujeitas ao dever de apresentação. O PSD deverá apresentar um valor mínimo para evitar que uma caneta ou uma revista tenham de ser declaradas..Os titulares de cargos abrangidos, desde que convidados nessa qualidade, podem aceitar convites para eventos oficiais ou de entidades públicas e privadas "cuja aceitação corresponda a ato de cortesia ou urbanidade institucional" - neste último caso, e se o convite implicar custos de alojamento e viagem superiores a 150 euros, por parte da entidade privada, a pessoa que aceita tem de comunicar e justificar esta situação. E fica inibida de intervir em procedimentos administrativos ou contratos que envolvam a entidade ofertante..O LOBBYING.A regulação do lobbying é uma novidade absoluta na legislação portuguesa. Com origem em projetos de lei de CDS e PS, o texto aprovado em votação indiciária tem por objetivo regulamentar a representação profissional de interesses e criar um registo de entidades privadas que se dediquem a esta atividade. Ou seja, sempre que uma entidade ou o titular de um cargo público reunir com entidades que sejam "representantes de interesses, com ou sem fim lucrativo, singular ou coletiva, sob a forma comercial ou não", tem de dar nota pública dessa reunião. Este é, nesta altura, o projeto de lei com um futuro mais periclitante. Bloco de Esquerda e PCP são contra, o PSD absteve-se na votação indiciária e mantém em aberto o sentido de voto..EUROPA SEGUE REGRAS IDÊNTICAS, REINO UNIDO NEM POR ISSO.Espanha.Os membros das Cortes espanholas - sejam deputados ou senadores - estão obrigados a exclusividade, não podendo desempenhar qualquer outra profissão ou atividade remunerada, pública ou privada. Só podem entrar na direção ou administração de qualquer organismo público quando para isso forem designados pelas Cortes, e sem qualquer remuneração. Estão impedidos de deter uma participação superior a 10% em empresas que celebrem contratos com o Estado. Os deputados e senadores apresentam, no início e no fim do mandato, uma declaração na qual devem constar os seus bens patrimoniais. A entidade responsável é a Comissão do Estatuto dos Deputados e Comissão para as Incompatibilidades, no caso dos senadores. Ambas são comissões internas do próprio Parlamento espanhol.. França.Em França, o desempenho de atividades privadas não está vedado aos parlamentares, mas com exceções: são interditas quaisquer funções em empresas que beneficiem de subvenções do Estado ou de entidades públicas que tenham como principal atividade o fornecimento de bens ou serviços ao Estado, ou empresas imobiliárias. É obrigatória a entrega de uma declaração de interesse e atividades, na qual devem constar as atividades remuneradas à data da tomada de posse e nos cinco anos anteriores, bem como todos os bens patrimoniais - uma declaração que, por lei, tem de ser cruzada com os dados da administração fiscal. Em caso de declaração falsa, o autor pode ser condenado a uma pena de três anos de prisão. O organismo responsável pelo controlo é a Alta Autoridade para a Transparência da Vida Pública, uma entidade administrativa independente. A Assembleia Nacional tem um Código Deontológico e um "Deontólogo", responsável pelo cumprimento das regras. É obrigatória a declaração de ofertas - sejam bens a viagens - de valor superior a 150 euros.. Reino Unido.As regras são bastante diferentes para a Câmara dos Comuns e para a Câmara dos Lordes, tendo os membros de ambas as câmaras têm de apresentar um registo de interesses. Como é referido no estudo realizado pelos serviços da Assembleia da República (no âmbito dos trabalhos da Comissão para a Transparência), no caso da Câmara dos Lordes não existe uma declaração formal de incompatibilidades, que apenas é expressa quanto à magistratura judicial e ao cargo de eurodeputado. Também são incompatíveis os condenados por traição, os declarados falidos e os condenados por penas superiores a um ano ou quem não tenha marcado presença na câmara por mais de seis meses. A Câmara dos Comuns rege-se por um Código de Conduta que estabelece diversas incompatibilidades com cargos públicos. Os parlamentares têm de declarar qualquer oferta ou benefício de valor superior a 500 libras (cerca de 580 euros), exceto se o doarem a uma instituição de caridade.. Bélgica.O Parlamento belga também tem duas câmaras - a dos Representantes e a do Senado. Todos os membros têm de entregar uma declaração de património junto do Tribunal de Contas. Os parlamentares regem-se por um Código Deontológico que estabelece que os deputados estão proibidos de receber vantagens materiais ou financeiras de qualquer natureza em troca de posicionamentos assumidos no exercício de funções, incluindo-se nesta definição todas as ofertas que não sejam de valor simbólico (não quantificado). O mesmo documento diz que têm de agir de acordo com os princípios do altruísmo, integridade, transparência, diligência, honestidade e preocupação com a reputação do Parlamento. Junto da Câmara dos Representantes funciona uma Comissão Federal de Deontologia, que emite pareceres (confidenciais) a pedido.