O que me contaram os polacos sobre João Paulo II

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Bronislaw Misztal, um dos intelectuais que aconselhavam Lech Walesa na liderança do Solidariedade, contou-me um dia como o então cardeal Wojtyla lhe arranjou emprego na Universidade Jaguelónica, em Cracóvia, quando todas as portas lhe estavam fechadas por ordem do regime comunista polaco. O futuro João Paulo II não perguntava se o perseguido era crente ou não, apenas lhe interessava que a perseguição não levasse ninguém a morrer de fome ou a virar costas ao país. E a Jaguelónica, uma das mais antigas universidades europeias, funcionava assim como um refúgio para intelectuais, como o ex-embaixador em Lisboa, que tinham recebido o diploma vermelho, de aluno de exceção, e o bilhete do lobo, que marcava quem era dissidente.

Passei a ver João Paulo II, hoje santo, com outros olhos. Sabia que tinha sido uma figura importante na derrocada do sistema comunista na Polónia e do próprio bloco soviético, também que denunciava os excessos do capitalismo, mas sobressaía mais na minha avaliação o seu conservadorismo moral, inspirado pelo seu braço direito no Vaticano e sucessor, o cardeal Ratzinger, depois Bento XVI.

Lembrei-me da conversa com Misztal, em que este me contou como Wojtyla, "uma figura emocionalmente muito quente", ajudou "a que a Jaguelónica se mantivesse como sempre foi, independente e tolerante", numa viagem ao sul da Polónia, onde visitei a universidade em que estudou Copérnico. E sobretudo quando fui a Wadowice, onde está a casa da família Wojtyla, com uma sala preservada na qual estão peças originais como uma estante com livros, algumas porcelanas e um bordado feito por Emilia, a mãe. O restante espaço é um museu, em que se destaca a pistola com que Ali Agca alvejou o Papa em 1981, em Roma, num 13 de Maio. Também ali está uma imagem da Senhora de Fátima, a quem o polaco agradeceu ter sobrevivido aos tiros do terrorista turco.

Inúmeras fotografias no museu mostravam em atividades desportivas ou de trabalho o homem que se tornou o primeiro Papa polaco, um país que deve à Igreja Católica ter mantido a sua língua e a sua cultura quando entre o século XVIII e o final da Primeira Guerra Mundial estava ocupado por russos, alemães e austríacos. Karol nasceu a 18 de maio de 1920 - faz agora 100 anos, por isso este artigo - e ficou órfão de mãe, depois morreu o irmão mais velho e, no início da Segunda Guerra Mundial, também o pai. Para evitar ser deportado para a Alemanha, pois os nazis dominavam a Polónia, o jovem trabalhou numa fábrica de químicos e, como escreve num outro artigo no DN o jornalista polaco Marcin Zatyka, nunca esqueceu o que é o trabalho braçal, os braços exaustos, os olhos vermelhos pelo esforço. Não admira que tenha escrito uma encíclica dedicada ao trabalho.

Na Polónia adoram João Paulo II. É um herói nacional, hoje mais consensual do que o próprio Walesa, o eletricista de Gdansk que com o sindicato Solidariedade, e a ajuda de gente como Misztal, desafiou os comunistas e mais tarde foi eleito presidente da República numa Polónia democrática.
Curiosamente, e por serem muito marianos (é famosa a Senhora de Czestochowa), os polacos também adoram Fátima. Certamente a história pessoal de João Paulo II reforça esse vínculo, ele que sofreu um segundo atentado num 13 de Maio, e em Fátima mesmo, na primeira das três visitas a Portugal.

"João Paulo II sempre me disse que Fátima lhe salvou a vida" foi o título de um artigo que publiquei exatamente a 13 de maio de 2016 após uma conversa em Cracóvia com o cardeal Dziwisz, que foi secretário pessoal do Papa durante quatro décadas. Sim, até à morte deste, em 2005, velhinho, muito velhinho, recusando a renúncia que a idade e a saúde aconselhavam. Bento XVI, talvez por ter assistido ao sofrimento do antecessor, fez uma escolha diferente.

Falo aqui de Papas, em especial de João Paulo II, porque existe este centenário de uma das grandes personagens da segunda metade do século XX. Também porque há uma enorme identificação entre ele e o povo polaco, entre a Igreja Católica e a nação polaca. É uma realidade.

Também a história de Portugal é inseparável da história do catolicismo. Basta ver a quantidade de igrejas que embelezam as nossas cidades e vilas, quase toda a escultura e pintura que está no Museu Nacional de Arte Antiga, a música erudita que chegou de séculos passados. Claro, alguns preferirão falar da Inquisição, que é uma mancha não só na história da Igreja mas na história de Portugal, mas é preciso também não esquecer como os missionários levaram o nome de Portugal quase tão longe como os nossos navegadores. Recordo aqui o pioneirismo dos jesuítas no Tibete e no Butão, também Francisco Pina a estudar o vietnamita para fazer um dicionário para português e inventar um modo de o adaptar ao alfabeto latino.

No nosso suplemento 1864 (ano da fundação do DN) deste sábado falamos, pois, muito de Papas, não esquecendo Francisco, o argentino Jorge Mario Bergoglio que veio do Novo Mundo e tenta dar mundo novo à Igreja, apesar de muitas resistências. Também não esquecendo João XXI, o lisboeta que foi o único Papa português, um médico e filósofo do século XIII que Dante colocou no Paraíso na sua Divina Comédia.

Portugal não precisa de ter complexos na relação com a sua história. E se o Estado é laico - e identifico-me totalmente com tal -, isso não significa que ignore aquilo que foi (é) o contributo dos católicos para a nossa sociedade, do mais essencial ao mais acessório. Pensemos como estamos todos desiludidos com a impossibilidade de neste ano celebrarmos os santos populares como tanto gostamos. E não me levem a mal, mas até imagino o jovem Karol a saltar uma fogueira.

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