Não é preciso recorrer a Sun Tzu e à sabedoria chinesa de há 25 séculos para se saber que na arte da guerra surpreender o inimigo é meio caminho para ganhar. Aliás, americanos e russos sabem-no por experiência própria na última Guerra Mundial - tanto como atacados, em Pearl Harbor e na Operação Barbarrossa, em 1941, como enquanto atacantes, no Dia D e na Ofensiva Bagration, em 1944..Especula-se que nesta quarta-feira a Rússia atacará a Ucrânia. E na realidade tudo pode acontecer, desde uma grande ofensiva militar (pois há meios suficientes junto à fronteira) até pequenas escaramuças a que alguém se apressará a chamar guerra. Também nunca é de excluir, a par de cedências de parte a parte de última hora, atos de provocação, de consequências imprevisíveis, ou algo fortuito, espécie de roleta-russa..Mas as guerras não costumam mesmo ter hora marcada, pois vale muito o efeito surpresa. Os japoneses sabiam-no quando bombardearam o Havai, os nazis quando invadiram a União Soviética e os americanos e os russos (na época dizia-se soviéticos) também o sabiam quando, três anos depois, quase em simultâneo, desembarcaram na Normandia e se lançaram na Bielorrússia contra as tropas ocupantes de uma Alemanha de repente entalada entre dois colossos, as superpotências do pós-Segunda Guerra Mundial..Ninguém duvida hoje de que a Segunda Guerra Mundial terminou em 1945, mas parece haver quem questione que a Guerra Fria acabou em 1989 com a queda do Muro de Berlim ou, de forma mais conclusiva, com a desagregação da União Soviética em 1991, dela saindo a Rússia e mais 14 países, incluindo a Ucrânia, que parece agora concentrar as atenções do mundo..Olhemos bem para 1991 e vejamos as diferenças óbvias para 2022: de duas superpotências passámos a uma, os Estados Unidos, e a uma candidata, a China. Se tirarmos o arsenal nuclear, onde se mantém um equilíbrio estratégico, a Rússia fica muito aquém dos Estados Unidos em termos de orçamento militar, e na realidade é a China que tem multiplicado os gastos militares. Em termos ideológicos, nem a Rússia é hoje comunista nem possui uma ideologia exportável, quanto muito é a China, consideremo-la ainda comunista ou não, que promove o autoritarismo como alternativa à democracia liberal. Estados Unidos e União Soviética viviam em dois sistemas políticos e económicos concorrentes e com escassa interpenetração, enquanto a luta hoje pela supremacia global entre Estados Unidos e China opõe dois países ideologicamente rivais mas grandes parceiros comerciais. Na lógica da Guerra Fria, foi possível usar animosidades históricas para trazer um terceiro ator relevante, caso da China, para o lado americano, mas hoje o terceiro ator relevante, a Rússia, tem-se progressivamente afastado do Ocidente e aproximado da China, o que parece ilógico. A influência da Europa Ocidental caiu muito na arena política mundial, até na NATO, que teima em existir apesar da extinção do Pacto de Varsóvia logo em 1991..Que têm estas diferenças a ver com a tensão dos últimos meses entre a NATO e a Rússia? Muito. Por um lado, desmentem a continuidade da Guerra Fria, por tentadora que seja a expressão para políticos, militares e até jornalistas. Por outro, obrigam a procurar explicações para a tal tensão que muitos dizem ter hora marcada para passar a conflagração..Explicações para o momento atual? Do lado da Rússia são mais fáceis de identificar. Vladimir Putin, não podendo reverter a desagregação da União Soviética e até a adesão dos Países Bálticos à NATO, não quer ficar na História como o presidente que cedeu nos limites mínimos de segurança da Rússia, ou seja, aceitando uma Ucrânia integrante de uma aliança hostil (o mesmo vale para a Geórgia). Por outro lado, embora com riscos, a capacidade do Kremlin de maximizar os recursos russos militares e diplomáticos, mas também energéticos (a Europa precisa do gás russo), fez de Putin, nos últimos dias, o mais visível dos líderes internacionais, recebendo o presidente francês e o chanceler alemão em Moscovo, indo a Pequim encontrar-se com o líder chinês, conversando por telefone com o presidente americano. Para a consolidação da imagem de homem forte, para consumo interno, nada de melhor..As explicações para a atitude da NATO são mais complexas. Países que já foram do Pacto de Varsóvia comparam a situação na Ucrânia (Crimeia anexada em 2014, territórios controlados por separatistas pró-russos) e veem fantasmas de tempos antigos, influenciando os outros membros, mesmo os reticentes, como a França ou a Alemanha. Desmoralizada pela retirada do Afeganistão, a NATO quer dar uma prova de vida voltando a um inimigo que conhece bem - é outra leitura. E Joe Biden, interessado em mostrar diferenças em relação a Donald Trump, prefere um braço de ferro com a Rússia, no qual, ao usar argumentos do direito internacional, anima dentro de fronteiras democratas e republicanos e ainda reconcilia os americanos com os europeus, mesmo que saiba que é com a China a verdadeira competição..Sim, as guerras não têm hora marcada. Já as faíscas acontecem a qualquer hora....Diretor adjunto do Diário de Notícias