Os programas de culinária fazem parte há tanto tempo da paisagem televisiva que é difícil recordar quão contra-intuitivo é o conceito. Enquanto a esmagadora maioria das actividades competitivas transmitidas no pequeno ecrã nos fornecem a possibilidade de avaliar os méritos dos participantes segundo os mesmos critérios que os juízes, e gritar no conforto do sofá que a voz "desafinou" ou que "não era penálti", os programas de culinária mostram-nos uma actividade avaliada pelos três sentidos que a televisão não alcança. Qual a reacção instintiva perante afirmações tão peremptórias como "a bolacha está dura", "o peixe tem pouco sal" ou "o caldo precisava de mais sabor"? A reacção instintiva é renunciar à reacção instintiva e adoptar a reacção educada: educada pela experiência prévia de ver televisão..O formato vai sendo regenerado através de micro-variações, como em Famílias Frente a Frente (RTP1, domingos), no qual em vez de indivíduos a cozinhar uns contra os outros, temos agregados familiares a cozinhar uns contra os outros. Cada episódio começa com o tipo de segmento musical que normalmente sugere que alguém está prestes a ser assassinado numa telenovela, e com o tipo de narração outrora reservado para preâmbulos de epopeias: "Seis famílias arrancam destemidas para as cozinhas mais famosas do país... enfrentam os desafios mais duros... as cozinhas ganham novas vidas... e novas histórias"..As famílias foram cuidadosamente escolhidas para representar a diversidade do país e pela sua paciente disponibilidade para encarnar estereótipos regionais: "nós somos alentejanos... isto vai ser devagarinho", "nós somos do norte... vai haver muito barulho, muita confusão", etc. Uma das famílias vem do Porto, ostenta o ominoso nome "Pinto da Costa", e chega aos estúdios munida de um patriarca que ameaça cantar músicas do Toy caso ganhe, ou caso perca..As seis equipas dão entrada nas famosas cozinhas, munidas do equipamento ancestral da modalidade (risos, exclamações e aventais coloridos). A reacção é unânime: "uau, são grandes." Pouco depois, chegam também os três membros do júri, acompanhado por aplausos (grande parte do programa consiste em aplausos), e provocando reflexões ontológicas entre os concorrentes: "Senti um friozinho na barriga quando os vi... é real... isto é real... caiu a ficha...".Com instruções para se manterem fiéis às tradições dos lugares de onde vieram, as famílias vão proclamando os seus manifestos. Os Ferra, de Santarém, prometem trazer ao programa "a alma ribatejana, bons pratos e, claro, os cavalos", o que sugere uma receita revolucionária. A família Fernandes, de Tavira, declara a sua intenção de "inovar um bocadinho... fazer as coisas um bocadinho diferentes". Uma das novidades é a confecção espontânea de uma divisa rimada para colocar no brasão de armas: "Com a família Fernandes, ninguém vai comer sandes." O líder da família Comenda apresenta os restantes elementos com alguma dificuldade: "Temos a Carmo, que é minha prima, a Maria, que também é minha prima, e a Marta... que é... (pausa, grilos) namorada do filho da Maria... genro ou futura genra... ou nora... ou qualquer coisa assim parecida.".Entretanto começam as provas, com as imagens habituais de pessoas a correr vigorosamente de um lado para o outro entre cirrostratos de farinha e vegetação arbitrária. Há humor passivo-agressivo ("se a minha nora estragar a açorda, temos o caldo entornado") e breves momentos de descontração, que consistem quase exclusivamente no Sr. Pinto da Costa a perguntar se alguém quer que ele cante um bocadinho..Os três jurados vão oferecendo comentário constante: "Estou curioso com esta família." "Eles estão entusiasmados" "Parece-me uma família forte" "Pois parece" Um concorrente vê uma família rival a rechear pão e acusa-os de plágio: "Já me deram cabo do psicológico." O júri continua a comentar: "Também estou muito curioso também com aquela família" "O linguado?" "O linguado"..Quando não está a comentar, o júri ocupa-se a oferecer valioso aconselhamento especializado: "Famílias, atenção ao tempo: não se atrasem, mas também não se adiantem.".As montagens frenéticas de alguidares a cair ao chão ou de óleo a fervilhar são intercaladas com depoimentos em estúdio, mostrando a emoção recapitulada num estado de tranquilidade que Wordsworth dizia ser a essência do processo poético. Enquanto, no calor do momento, a concorrente é apenas capaz de desabafar "isto agora está um bocadinho stressante", mais tarde consegue reflectir o suficiente para explicar toda a situação: "Olhei para a panela e vi que não estava a ferver.".Os pratos são avaliados segundo uma intrigante estenografia metafísica: um pão recheado de charcutaria é elogiado por "ter alma"; sobre um bacalhau com bacon é dito que "há aqui um sentimento"; e uma sopa de cação conseguiu a improvável proeza de transubstanciação que foi "trazer o Alentejo para aqui"..Segue-se a primeira prova de eliminação, cuja importância é reforçada pelo crescendo musical e pelas expressões sérias dos jurados. As famílias aguardam com expectativa. Que tarefa épica terão pela frente? Limpar os estábulos do rei Áugeas? Matar a Hidra de Lerna e confitar-lhe a cabeça?.Na verdade, a missão é apenas construir uma casa de gengibre em cima de um bolo, mas mesmo essa tarefa menos exaltada não está isenta de dificuldades. Uma das concorrentes abre armários desesperadamente à procura de "sopa de mel", porque a receita indica "duas colheres de sopa de mel". Ânimos exaltam-se. "Eu não estou perdida!" garante uma pessoa completamente perdida. "Eu não estou chateada com a minha mãe", garante uma pessoa chateadíssima com a mãe. "AGORA É O TUDO OU NADA", grita alguém, referindo-se a uma cobertura de chocolate. À pergunta "quem é que foi tirar a massa antes do tempo?" respondem dedos indicadores em riste: "FOI ELA!" Os veredictos do júri, quando chegam, são menos avaliações do que tréguas impostas a uma guerra fratricida. Algumas coisas estão salgadas, garantem. Outras não..Com este nível de suspensão de descrença, aliado à tendência de cada formato para se ir descascando em formalismos reduzidos a cada nova iteração, é uma questão de tempo até a gastronomia televisiva enveredar pelo "método lip sync", começando a mostrar-nos karaoke de cozinha: programas com pessoas que apenas fingem cozinhar, avaliadas por pessoas que apenas fingem comer, perante pessoas que apenas fingem interesse.