É uma inevitabilidade clínica. Por muitos cuidados que tenha com a saúde, por mais que procure fazer exercício ou manter dieta equilibrada, há um risco a que qualquer televisão está sujeita: a estreia de um novo drama passado num hospital. Resistindo a todos os esforços para a erradicar, a "série sobre médicos" continua a florescer, irrompendo em surtos pontuais, tão ou mais comuns e incontroláveis do que os surtos das suas congéneres etiológicas, a "série sobre advogados" e a "série sobre polícias"..A mais recente estirpe é New Amsterdam, que a Fox Life (um dos canais com o sistema imunitário mais vulnerável) tem transmitido por cá. New Amsterdam é também o nome do local onde a acção decorre, um hospital nova-iorquino com uma história venerável, um presente repleto de problemas, e um futuro nas mãos do novo director clínico. O primeiro episódio acompanha o primeiro dia no cargo, e depressa se torna claro que o novo director clínico não vai ser um novo director clínico igual aos outros. Trata-se de um novo director clínico especial: um espírito livre - sagaz, inspirador, infalível..Eis um homem que defende o Bem. Eis um homem que acorda às cinco da manhã, ao som de I Feel Good. Eis um homem que se chama "Max Goodwin". (Os argumentistas só não lhe chamaram "Fielding Goodney" porque esse nome já foi usado por Martin Amis.) O seu coração fervilha com ideias simples mas poderosas, capazes de cortar a direito pelo matagal de corrupção, venalidade e burocracia que sufoca qualquer grande instituição. O seu cabelo é curto e as suas golas largas, de forma a expor o magnífico pescoço e facilitar a circulação de verdades radicais na sua magnífica cabeça. A sua grande inspiração é que os médicos devem ajudar os pacientes em vez de os matarem: uma noção revolucionária, que deve ter deixado milhares de médicos por esse mundo fora boquiabertos..Na primeira reunião com o pessoal, decide despedir todo o departamento de cardiologia. Porquê? Porque eles pensavam mais "no dinheiro" do que "nos pacientes". De seguida coloca aos atordoados sobreviventes a pergunta que se torna o seu lema oficioso: "Como é que vos posso ajudar?" Estranhamente, ninguém responde "vai buscar as pessoas que despediste, antes que aconteça um desastre". O pedopsiquiatra residente limita-se a dizer que o hospital deve ter uma maior oferta de comida saudável. Max responde: "Será feito." Outra pessoa sugere que se acabe com a sala de espera e que todos os doentes sejam deitados numa cama confortável assim que chegam ao hospital. Max responde: "Será feito.".Nenhum pormenor destas mudanças estruturais volta sequer a ser abordado e o espectador é forçado a adoptar uma de três explicações: 1) o maior hospital da América tinha um enorme excedente orçamental e uma colecção de camas vazias, mas nunca ninguém reparara; 2) Max possui poderes bíblicos e basta-lhe usar o Verbo para alterar instantaneamente a realidade material; ou 3) a série é menos ficção do que uma fantasia infantil sobre heroísmo idealista como solução para problemas sistémicos complexos, onde nada tem causas ou consequências. O resto do episódio sugere que a explicação sobrenatural não é totalmente descabida, pois o enredo consiste numa sequência de momentos concebidos para ilustrar a variedade de maneiras pelas quais Max consegue ter imensa razão ou ser imensamente espectacular. Um problema diplomático é resolvido quando Max conversa com um embaixador na sua língua-mãe. Outro embaixador testemunha a conversa e diz-lhe: "Você dava-nos jeito na próxima Assembleia Geral da ONU." Max responde com um sorriso modesto. Uma brilhante cirurgiã que perdera o contacto com a prática e passava o tempo em entrevistas na televisão decide voltar ao activo. "Porque é que voltou?", pergunta-lhe Max. "Por sua causa", responde ela. "As pessoas voltaram a estar entusiasmadas por serem médicas. Eu também quero sentir esse entusiasmo." Max responde com um sorriso modesto. "A mudança... é sempre... possível", proclama, antes de uma montagem em câmara lenta ao som de uma versão acústica dos Coldplay..Não há muito que o espectador possa fazer com séries más, excepto agasalhar-se, beber muitos fluidos e esperar que passe: a série má acabará por morrer sozinha..A não ser que se torne crónica, como aconteceu a Anatomia de Grey, agora na sua octigentésima temporada, e aparentemente tão incurável como a psoríase ou a hipertensão. Se ligarmos a Fox Life a meio da tarde, é quase certo que vamos encontrar um episódio de Anatomia de Grey. Se ligarmos qualquer outro canal a qualquer outra hora do dia, é provável que encontremos outro episódio de Anatomia de Grey. Se abrirmos o porta-luvas do carro ou a gaveta do frigorífico, é pelo menos possível que de lá saia mais um episódio de Anatomia de Grey..Ao contrário de New Amsterdam, Anatomia de Grey não finge ser uma ficção sobre o dia-a-dia num hospital de grandes dimensões. É apenas uma ficção sobre o dia-a-dia de várias pessoas sexualmente atarefadas, que por mero acaso trabalham todas num hospital de grandes dimensões. O típico episódio também começa de manhã, com um médico de óptimo aspecto físico a levantar-se da cama, ao lado de outra médica de óptimo aspecto físico. A narração em voz off enuncia o tema do dia: uma qualquer abstracção, do género "solidão", "segredos", ou "romantismo". No hospital, a primeira reunião de trabalho é dedicada a resolver enigmas logísticos: quem é que deixou um par de cuecas de renda no chão do bloco operatório? Toda a gente assume um ar culpado, apesar de o hospital ser claramente uma utopia carnal sem sala de espera, onde toda a gente é encaminhada para a cama mais próxima..Começam as primeiras rondas, que servem principalmente para diagnosticar casos de tensão sexual. O neurocirurgião atraente explica ao endocrinologista charmoso que deixou de ir para a cama com a radiologista provocante. O cirurgião cardiotorácico sensual sugere à hematologista voluptuosa que deixe de ir para a cama com o anestesista sedutor e passe a ir para a cama com o gastroenterologista libertino. Entretanto um paciente dá entrada nas urgências, com uma doença gravíssima cuja principal função é ajudar um dos vários especialistas a aprender valiosas lições sobre si próprio e a crescer enquanto ser humano. Após um rápido e brilhante diagnóstico, é-lhe receitada uma dose de flanela verbal, administrada pela narração numa sequência de banalidades paradoxais pseudoprofundas, que parecem más traduções de Oscar Wilde em francês: "Os segredos existem para serem mantidos, mesmo quando são revelados", "por vezes o gesto mais arriscado é não correr riscos", "o ovo fica mais estrelado precisamente quando é cozido". Outro paciente em estado crítico decide entrar em coma, para não ter de ouvir mais paradoxos..Ao longo do que já serão certamente centenas de milhares de episódios, o hospital de Anatomia de Grey já foi alvo de incêndios, ataques terroristas, invasões e tiroteios, mas nada tão aterrador como a greve de enfermeiros que ocorre na segunda temporada. Pela primeira vez, todos os protagonistas tiveram mesmo de trabalhar - à excepção do nefrologista cativante, que foi remover as cuecas da angiorradiologista lasciva enquanto a narração provavelmente explicava com sabedoria que "o facto de termos coragem de ir para a cama é a única coisa que nos mantém de pé"..Escreve de acordo com a antiga ortografia