Magna caca

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O primeiro episódio de The Young Pope começa na Praça de São Marcos, em Veneza. Vemos uma gigantesca pirâmide de bebés, debaixo da qual se arrasta um homem imaculadamente vestido de branco.

Os bebés são efeitos especiais. O homem é o papa. A sequência é (percebemos pouco depois) um sonho. O homem acorda e continua a ser o papa. A Praça de São Marcos é agora a Praça de São Pedro no Vaticano, onde o papa discursa perante os fiéis, gritando coisas sobre os prazeres esquecidos da masturbação, enquanto alguns cardeais desmaiam com o choque. O discurso é (percebemos pouco depois) outro sonho. O homem acorda pela segunda vez e continua a ser o papa, confidenciando a um assessor o sonho que teve durante a noite (um sonho que não se assemelha a nenhum dos dois que o espectador viu). O episódio vai no seu décimo terceiro minuto.

Esta sequência inicial serve como uma declaração de intenções em que nenhuma intenção é declarada, pois não é esse o estilo de The Young Pope, nem do jovem papa que é o seu protagonista: declarar intenções. O apetecível vazio para ser preenchido ad hoc manifestou-se ainda antes de ser um fenómeno propriamente televisivo, ao longo de uma semana gloriosa em que foi apenas uma hashtag. Nos primeiros dias de 2017, entre o sucesso inicial da transmissão em Itália (país do criador, Paolo Sorrentino) e a estreia na HBO americana, a série foi o epicentro de uma eclosão espontânea de memes online. Na altura, tudo o que o público não italiano conhecia sobre The Young Pope era um título (é o papa... mas jovem!), uma vaga premissa (é o papa... mas americano! E esquisito!) e algumas imagens soltas do trailer (é o papa... mas de óculos escuros! E a fumar um cigarro!). Perante este amontoado de provas circunstanciais, foi fácil presumir que o produto final seria uma quase paródia involuntária dos tropos mais estafados da televisão de prestígio, o tipo de coisa que parece menos uma série do que o seu reductio ad absurdum - uma versão distorcida e fracturada de algo que não existe, constituído pela soma das partes que existem, como as minissátiras inseridas, por exemplo, em Family Guy ou em BoJack Horseman.

Inesperado, portanto, foi o brio entusiástico com que The Young Pope envergou as suas vestes berrantes e mostrou que os melhores memes ficaram aquém da realidade. Ao longo dos seus dez episódios, o jovem papa descompõe cozinheiras velhinhas, envia cardeais que o irritam para o Alasca, exige uma variedade específica de Coca-Cola ao pequeno-almoço (com sabor a cereja) e compara um sucedâneo a uma "heresia", diz aos fiéis que não o merecem, adopta uma estratégia de invisibilidade e mistério, comparando-se a Salinger, Banksy e aos Daft Punk, veste-se para uma cerimónia ao som de I'm Sexy and I Know It e solta um canguru nos corredores do Vaticano, que vai reaparecendo a intervalos regulares, quase sempre levando o papa a tentar fazê-lo dar saltos através do seu poder divino. Tal como os memes previram, o papa fuma. Ao contrário do que os memes previram, quando um cardeal lembra o papa de que o seu antecessor proibiu que se fumasse na residência oficial, o papa responde "mas agora há um papa novo".

A aura de estranheza é reforçada pela cinematografia e pelas escolhas de realização, que parecem almejar a um ideal estético algures entre o cinema europeu mais piroso dos anos 1970 e os telediscos da MTV nos anos 1990. Sorrentino, um homem com um nome muito bom que já fez alguns filmes muito maus, pode sofrer por comparação ao lado dos grandes realizadores seus conterrâneos, mas no mundo da televisão contemporânea - em que o mesmo rígido livro de estilo vai sendo aplicado de série em série como uma marca de água - a sua originalidade de aluguer acaba por tornar a novidade mais relevante do que a piroseira. (Na cena inicial, durante o discurso sonhado, a palavra "masturbação" é acompanhada de um zoom acelerado ao rosto do protagonista que provavelmente não aparecia num ecrã desde Jesus Cristo Superstar.)

The Young Pope é, a espaços, extremamente engraçado, mas a comédia quase nunca parece o objectivo primário mas sim o efeito colateral da tal intenção de não anunciar uma intenção - tal como o suposto "surrealismo" é menos um esforço para estabelecer um tom do que uma finta para o evitar.

A maioria das séries que anunciam preventivamente a sua "qualidade" não costumam desperdiçar a mínima oportunidade para permitir aos seus protagonistas que declarem os resultados da sua introspecção. Mesmo nos melhores exemplos, raramente esses momentos são mais plausíveis ou interessantes do que os caóticos desabafos do jovem papa sobre fé, mistério ou poder, mas o tempo e a vontade treinaram-nos a aceitar esses ritmos e maneirismos artificiais como sinónimo de sofisticação.

The Young Pope recusa o desafio de tornar sofisticado o equilíbrio entre solenidade e absurdo nos seus diálogos, da mesma maneira que recusa o equilíbrio entre opulência e absurdo nas suas paisagens. O que é que uma ficção televisiva pode fazer quando tenta dramatizar algo tão fora do mundo como, por exemplo, a eficácia real de uma oração, a não ser mergulhar de cabeça nesse intervalo? Há uma cena em que o papa passeia pelos jardins do Vaticano e vê uma mulher (que sabemos ser estéril) a ter sexo com o marido; a sua reacção é rezar para que o acto dê frutos, exortando insistentemente, e num tom ríspido, uma presença invisível no céu para intervir directamente no mundo terreno de sémen e ovários. (O tom ríspido, aliás, é o mesmo com que ordenou ao canguru que saltasse.) A oração resulta e a gravidez acontece. Alguns episódios mais tarde, quando visita o casal feliz, o papa testemunha um acidente fisiológico e oferece-se para mudar as fraldas do recém-nascido, comentando as incidências fecais em latim: "Ui... magna caca!"

Muitas séries na última década aclimatizaram-se, deliberadamente ou não, às exigências tácitas da ecologia online onde hoje são também recebidas: quem nunca viu uma cena que pareceu concebida com o propósito único de gerar gifs no Twitter não andou a prestar atenção. The Young Pope parece ter chegado ao mesmo sítio pelo lado contrário: algo que não é tanto uma resposta a este ambiente, mas um produto nato do mesmo, gerado por sopro divino no grande conclave da internet. Daí que o seu humor seja simultaneamente espatafúrdio e natural para quem se tornou fluente na retórica dominante do humor online: a criação colectiva de uma atmosfera residual em que algo pode, ao mesmo tempo, ser dito muito a sério e nada a sério, em que virtualmente nada pode ser feito sem se tornar absurdo, em que justaposição e non sequitur são mais potentes do que sinceridade. É por isso que The Young Pope não é bom nem mau, nem sincero nem satírico; todas essas categorias fazem parte da doutrina antiga: agora há um papa novo.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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