As meninas de Cabul
A voz esganiçada do embaixador dos talibãs em Islamabad, procurando fazer os jornalistas do mundo inteiro acreditar que resistiriam às bombas americanas, é uma das memórias que guardo do mês passado no Paquistão a tentar entrar no Afeganistão a seguir aos atentados de 11 de Setembro de 2001. Percebia-se que o Emirado Islâmico do Afeganistão, protetor de Bin Laden, estava mais isolado do que nunca (só três países o reconheciam) e que os ataques aéreos americanos conjugado com as forças da Aliança do Norte, a oposição afegã, depressa derrotariam os chamados "estudantes de religião".
Não cheguei a entrar no Afeganistão dessa vez, mesmo que em Peshawar as burkas fossem tantas como no outro lado da fronteira que artificialmente divide o território pastune, a etnia que sempre foi a base dos combatentes talibãs. E já estava de volta a Lisboa, quando o inevitável aconteceu: Cabul caiu, Kandahar também, e o mullah Omar foi visto a fugir de moto do bastião do seu movimento. Milhares de apoiantes dos talibãs terão cortado a barba então, uma forma de virar a casaca, e outros milhares refugiaram-se nas montanhas entre o Afeganistão e o Paquistão para sobreviver à vingança da Aliança do Norte, onde a etnia tajique sempre foi maioritária. Era o grupo de Ahmed Shah Massud, um mujaedine herói da guerra contra os soviéticos, morto pelos talibãs em vésperas dos atentados contra Nova Iorque e Washington, prova de que a Al-Qaeda de Bin Laden sabia bem que os Estados Unidos iriam retaliar contra a Afeganistão, por servir de santuário para o terrorismo jihadista. O saudita, destituído da nacionalidade por denunciar a aliança do reino com a América, sobreviveu depois dos maiores atentados da história uma década refugiado no Paquistão, até ser morto por ordem de Barack Obama. O mullah Omar viveu até 2013, sempre escondido, e a sua morte pareceu ser o fim do sonho de regresso talibã.
Foi num Hércules C-130 da Força Aérea Portuguesa que finalmente conheci Cabul, em 2005. Percorri a cidade numa coluna de blindados dos comandos. Gostei das crianças na rua a brincar outra vez com papagaios de papel, antes proibidos. Mas havia também miradas hostis aos estrangeiros, daqueles afegãos orgulhosos de um dia terem expulso os britânicos e noutro os russos, mesmo que seja exagero a fama de cemitério de impérios que o país ganhou. Olhe-se para a retirada americana agora, e dos países aliados que lá estavam: está a tornar-se um cemitério, mas sim para os afegãos que acreditaram que a comunidade internacional ia ajudá-los a construir um Estado, a edificar uma sociedade moderna. Entre esses cidadãos traídos sobressaem as mulheres, que nas últimas duas décadas tinham podido voltar a ser médicas, professoras, jornalistas, deputadas, ministras, até candidatas presidenciais. Morreram alguns milhares de soldados estrangeiros para ajudar a construir um Afeganistão pós-talibãs, incluindo dois portugueses. Parece agora não ter servido para nada. Aos estudantes de religião quase só lhes falta tomar Cabul.
George W. Bush agiu bem em 2001, ao derrubar os talibãs, uma guerra justa aos olhos do mundo. A partir daí, ele próprio, e também os seus sucessores Obama e Donald Trump, foram incapazes de dar instrumentos aos afegãos para, entre eles, decidirem que país ter. Fizeram demasiadas promessas, ao mesmo tempo que acumularam erros. Não é fácil, claro, entender o mosaico étnico afegão, nem a estrutura clânica dentro, por exemplo, dos pastunes, o grupo maior. Mas a retirada foi precipitada, confiante demasiado na capacidade de defesa do governo do presidente Ashraf Ghani, e até o anúncio do próximo dia 11 de setembro como data limite para a saída das tropas americanas forneceu ânimo aos talibãs para procurarem celebrar a tomada total do país no aniversário dos atentados de 2001. A comunidade internacional pouco pode, porém, criticar os Estados Unidos de Joe Biden, pois o abandono é geral. E os países vizinhos, até a China, procuram já garantir pontes com os novos senhores do Afeganistão.
Pouco há agora a fazer a não ser forçá-los a ser menos bárbaros. Há 20 anos, os talibãs proibiam as meninas de ir à escola, usavam os estádios para execuções perante multidões, perseguiam com sanha minorias como os hazaras (olhos mongóis e religião xiita), destruíam os budas de Bamiyan que recordavam que o país tinha uma história antes do islão, uma história onde até os gregos de Alexandre participaram. Muito terá de ser feito para que o provável regresso do Emirado Islâmico do Afeganistão, o tal do embaixador de voz esganiçada, não seja trágico para o seu povo e uma vergonha para o mundo. Leia O Menino de Cabul , de Khaled Hosseini. Explica mais sobre os talibãs que todos os manuais de geopolítica.