"Nem os EUA nem a URSS e muito menos o Reino Unido teriam conseguido derrotar a Alemanha sozinhos"

Entrevista a Luís Nuno Rodrigues, historiador e diretor do <a href="https://cei.iscte-iul.pt/en/" target="_blank">Centro de Estudos Internacionais do Iscte</a>
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Na cimeira de Ialta, em que Franklin Roosevelt ainda participou, já se percebia que com a derrota previsível da Alemanha nazi a futura confrontação seria entre os aliados ocidentais e a URSS?
Sim, claramente. A perceção das autoridades militares norte-americanas é essa, desde muito cedo. Os EUA entram na guerra na Europa para impedir que alguma potência europeia pudesse exercer um domínio exclusivo do hinterland europeu e limitar o acesso americano. Até 1943, a potência que parecia em melhores condições para alcançar esse objetivo era a Alemanha nazi, que controlava já grande parte do centro e do ocidente europeu. Mas a partir do momento em que se rompe o impasse de Estalinegrado e a URSS toma a iniciativa e avança em direção a Ocidente, as autoridades militares norte-americanas procedem a uma reavaliação da situação. As projeções dos Joint Chiefs of Staff [JCS] apontavam para retumbantes sucessos militares do Exército Vermelho em 1943 e 1944. A URSS, previam os militares americanos, poderia continuar a avançar até ao começo de 1945 e conquistar toda a Polónia e parte da Alemanha Oriental. Depois, poderia reorganizar as suas forças e linhas de abastecimento e continuar o seu avanço até conquistar toda a Alemanha e, quem sabe, até ao canal da Mancha; ou então forçar a Alemanha (e com ela grande parte da Europa ocupada pelos alemães) a uma paz nos termos definidos pela Rússia. Em ambos os casos, o resultado seria o estabelecimento de uma posição dominante e hegemónica da URSS na maior parte da Europa. Se assim fosse, concluíam os relatórios dos JCS, Hitler poderia estar morto, o nazismo tinha desaparecido, mas os EUA não teriam alcançado os seus objetivos.

É possível dizer que foram os Estados Unidos ou a União Soviética o principal responsável pela derrota nazi?
A questão é saber como podemos medir ou aferir essa responsabilidade. Pelo número de mortes infligidas aos soldados alemães? Pelas batalhas diretas travadas com o exército alemão? Pelas dificuldades trazidas aos alemães pelo desembarque na Normandia? Pela resistência britânica na fase inicial da ofensiva alemã? Pelo papel desempenhado pelas resistências locais? O que faz derrotar a Alemanha nazi é o facto de haver uma grande coligação que, por motivos diversos, converge nos objetivos de entrar na guerra e de derrotar a Alemanha. A criação da grande aliança é que desequilibra. Nem os EUA nem a URSS e muito menos o Reino Unido teriam conseguido derrotar a Alemanha sozinhos.

A posse exclusiva da arma atómica até 1949 dava vantagem aos americanos no início da Guerra Fria, ou a impossibilidade da sua utilização, depois do horror de Hiroxima e Nagasáqui, anulava qualquer tentativa de desequilibrar a favor dos Estados Unidos?
Quando George Orwell cunhou o termo Guerra Fria, era a segunda perspetiva que ele tinha em mente. Nesse artigo de 1945, intitulado precisamente "You and the Atomic Bomb", Orwell argumentava que a URSS iria também possuir a arma atómica e que o mundo iria ficar dividido entre as superpotências possuidoras de armas atómicas que entre si fariam um acordo tácito para nunca a utilizar, vivendo em permanente guerra fria. No entanto, não creio que a utilização de armas atómicas estivesse tão posta de lado como hoje nos parece. A verdade é que os EUA a utilizaram no Japão, numa impressionante demonstração de força, mas também da disponibilidade por parte dos seus dirigentes em recorrer a armas atómicas. Foi a consciência desse desequilíbrio que levou a URSS a acelerar os seus esforços e a conseguir realizar o primeiro teste em 1949.

A criação da NATO é obrigatória para a defesa da Europa Ocidental?
É um passo decisivo no caminho que levou os EUA a assumir a responsabilidade da defesa dos países da Europa Ocidental. Mas tem de ser compreendido numa sequência de eventos. Inicialmente, a preocupação dos EUA é sobretudo com o grau de destruição e de miséria na Europa, receando que as difíceis condições de vida dos europeus os levassem a encarar o comunismo e a URSS como uma alternativa plausível para a sua recuperação. Tanto mais que em França e na Itália, por exemplo, existiam partidos comunistas com forte implantação e com responsabilidades governativas. O Plano Marshall surge em 1947 como um primeiro instrumento para promover a recuperação económica e a estabilização da Europa. Sob o ponto de vista dos EUA, porém, as preocupações redobraram no início de 1948, com o golpe de Praga e a consolidação do domínio comunista na Checoslováquia. Tornou-se claro que a contenção da URSS não se poderia fazer apenas através de instrumentos económicos e que os norte-americanos teriam que estabelecer uma aliança mais duradoura que garantisse a defesa e a segurança dos países da Europa Ocidental.

Havia nos Estados Unidos quem acreditasse, ao contrário de Harry Truman, que era possível um entendimento com Estaline?
Sim, sobretudo durante a administração Roosevelt, que tinha sido o responsável pela aproximação entre os EUA e a URSS no período entre as duas guerras mundiais e pelo estabelecimento de relações diplomáticas. Depois, na fase final da guerra e até à sua morte, em abril de 1945, Roosevelt procurou ao máximo manter as conversações abertas com Estaline, estabelecer acordos e compromissos. Mas o tempo e as ações da URSS, sobretudo na Europa de Leste, foram convencendo os líderes norte-americanos de que tal não era possível. Com a subida ao poder de Truman, esta tendência torna-se cada vez mais clara com a evolução para uma posição mais dura: a política de integração deveria ser substituída pela política da contenção.

Guerra da Coreia, Guerra do Vietname, Guerra do Afeganistão, Guerra Civil em Angola. A Guerra Fria só se podia tornar quente na Ásia ou na África?
A Guerra Fria não foi apenas uma disputa pelo controlo do centro do sistema internacional, mas também pela periferia, na Ásia, no Médio Oriente, na América Latina e em África. Foi uma guerra fria global. E foi justamente nessas regiões que os chamados conflitos por procuração tiveram lugar. Alguns deles muito violentos e com elevados números de mortos, como os que refere na sua pergunta. A preocupação das duas superpotências era sempre a de promover a instalação de governos que lhe garantissem o exercício da sua influência. Mas é importante também percebermos que em muitos destes casos a Guerra Fria não representa a origem das disputas e dos conflitos. Em muitos casos, eram dinâmicas preexistentes nas quais a Guerra Fria se vai inscrever, com os EUA e a URSS a tomarem partido, a apoiarem fações em disputa, ou a fornecer apoios logísticos.

Como aproveitaram para a sua estratégia de domínio global as superpotências as rivalidades regionais, como Índia versus Paquistão, ou Israel versus países árabes?
Exatamente como referi... dinâmicas locais preexistentes, acentuadas com o final da Segunda Guerra Mundial e com o colapso dos tradicionais impérios coloniais e nas quais se cruzam outro tipo de fatores, nomeadamente a religião, nos dois exemplos que menciona. A Guerra Fria vem acentuar as rivalidades regionais. A disputa entre os EUA e a URSS não explica toda a história da segunda metade do século XX, mas contribuiu para exacerbar tensões e intensificar conflitos. Por sua vez, estas dinâmicas locais e regionais também agiram sobre a Guerra Fria e sobre as superpotências, obrigando-as a rever prioridades e adaptar estratégias.

Portugal revolucionário correu mesmo o risco de ser um satélite soviético na Europa Ocidental, ou essa possibilidade esteve sempre distante?
Quando ocorre o 25 de Abril, estávamos numa fase da Guerra Fria - a Détente - em que as duas superpotências tinham optado por atitude de desanuviamento e de desenvolvimento de relações políticas e diplomáticas mais estreitas. No final, nenhuma das superpotências se mostrou disposta a pôr em causa em Portugal os equilíbrios gerados pela Détente. Mas mais importante ainda foi o papel da Europa Ocidental. É que a Détente europeia era também uma realidade, com a aproximação crescente entre os dois lados da Cortina de Ferro em grande medida protagonizada pela Alemanha Federal. E os europeus tiveram um papel fundamental para convencer Brejnev e a URSS a não avançarem com um apoio mais consequente ao Partido Comunista Português e também para convencer os norte-americanos a não enveredarem pelo apoio a qualquer tentativa vinda da direita, como, por exemplo, a que o general Spínola procurava organizar no exílio. É um caso muito interessante, com estas dinâmicas a confluírem nos dias decisivos da Cimeira de Helsínquia, no final de julho de 1975. Na Finlândia estava a maioria dos chefes de Estado e de governo, e os relatos de que dispomos das conversações então havidas a propósito da situação em Portugal são muito ilustradores destas dinâmicas.

Até que ponto o programa Guerra das Estrelas de Ronald Reagan desencadeou a crise no sistema soviético?
Foi um fator importante, na medida em que elevou a fasquia na corrida ao armamento a um nível que a URSS não conseguiu acompanhar em termos da sua fatura económica. Mas os sintomas de crise na URSS e no seu império eram anteriores e diversos. Era uma extensão imperial demasiado vasta, não apenas no sentido territorial, mas também da esfera de influência soviética na Europa de Leste e dos regimes apoiados pelos soviéticos noutros continentes. Mas a escalada no armamento promovido pela administração Reagan foi muito importante, com investimentos massivos nesta área e com o anúncio da Iniciativa de Defesa Estratégia - a Guerra da Estrelas. Isto teve grande impacto junto dos decisores soviéticos, uma vez a perspetiva de um eventual escudo defensivo antimíssil alterava os dados do equilíbrio do terror, o chamado MAD [Mutually Assured Destruction] característico das décadas anteriores.

Para a queda do Muro de Berlim foi decisiva a ação do Ocidente ou, sobretudo, dos movimentos pró-democracia em países como a Polónia?
Na história, como na vida, é difícil apontarmos uma causa única para as nossas ações. A verdade é que, como referi, a Détente europeia era uma realidade desde os anos de 1970 e as consequências do espírito de Helsínquia não se tinham desvanecido. Desde a Cimeira de Helsínquia, tinha sido gradualmente estabelecida uma rede de organizações não-governamentais que promovia os contactos e os intercâmbios entre as duas Europas, e sabemos hoje que a ação dessas organizações foi fundamental para o final da Guerra Fria na Europa, influenciando sobretudo as gerações mais jovens. Algumas dessas organizações ainda existem, como é o caso da Human Rights Watch, que inicialmente se chamava Helsinki Watch. No caso da Polónia, que refere na sua pergunta, foi indiscutível a importância de grupos como o Comité de Defesa dos Trabalhadores, criado em 1976, o Comité de Autodefesa Social, em 1977, e, claro, o Solidariedade, criado em 1980.

Considera Mikhail Gorbachev um derrotado do história?
Não, de maneira nenhuma. É certo que foi ultrapassado pela vertigem dos acontecimentos, mas ficará sempre como o principal impulsionador da abertura da URSS. Há pouco conversávamos sobre a importância relativa de fatores diversos no final da Guerra Fria. Existem historiadores que colocam o acento tónico nos fatores materiais e no declínio da URSS. Mas outros têm destacado, e bem, na minha opinião, a ação de Mikhail Gorbachev, que foi fundamental. Gorbachev promoveu uma revolução ao nível das ideias num momento de crise da própria identidade da URSS e pôs em marcha uma série de reformas a nível interno. Mas compreendeu também que sem alterar a sua política externa não o conseguiria fazer: daí a prioridade à saída do Afeganistão, as iniciativas quanto à redução do armamento e, acima de tudo, a chamada "doutrina Sinatra". Cada país da Europa de Leste poderia agora seguir o seu próprio caminho.

O alargamento da NATO a leste gerou Vladimir Putin e a atual Rússia em competição com o Ocidente, mesmo tendo menos recursos do que a União Soviética?
O alargamento da NATO a leste é uma das principais causas de um ressentimento latente e de um sentimento de desconfiança na Rússia relativamente aos EUA e ao Ocidente. Mas o alargamento da NATO era inevitável: era solicitado pelos países da Europa do Leste e era visto pelos americanos como uma maneira de manter a nova Alemanha unificada num espírito multilateral. Além disso, as tensões com a Rússia nunca desapareceram. Há poucos anos, Sten Rynning, um académico dinamarquês, escreveu que o final da Guerra Fria não significou o desaparecimento do dilema geopolítico que tinha levado ao seu surgimento, ou seja, a procura do equilíbrio político entre as potências continentais europeias. De certa maneira, nunca desapareceram as preocupações manifestas na fórmula atribuída ao primeiro secretário-geral da NATO, Lord Ismay, segundo o qual a NATO serviria para manter os russos de fora, os alemães em baixo e os americanos por dentro.

É possível imaginar uma Guerra Fria entre Estados Unidos e China?
As condições históricas são irrepetíveis e o posicionamento de ambos os países, EUA e China, é muito diferente. Mas a competição entre ambos é um facto, e tudo indica que estamos já a presenciar a um período de transição no sistema internacional, em que a China parece destinada a substituir o EUA. Como e quando, é o que vamos perceber nos próximos anos. No final da Segunda Guerra Mundial, os EUA substituíram o Reino Unido nessa posição. Nessa altura foram os criadores de uma nova ordem internacional, o que levou o então secretário de Estado Dean Acheson a intitular as suas memórias de Present at the Creation; o presidente Donald Trump parece, pelo contrário, que tem sido acusado de estar "present at the destruction", uma vez que a sua política externa tem desferido rudes golpes nessa mesma ordem internacional que os americanos criaram, quase que abrindo caminho nestes últimos anos para a ascensão da China no plano internacional.

A Índia tem condições para disputar um dia também a hegemonia dos Estados Unidos nascida da Segunda Guerra Mundial?
Provavelmente já irá disputar essa hegemonia com a China, mas penso que num futuro mais distante. É uma das economias que mais rapidamente crescem, com uma forte aposta na tecnologia e com condições para dentro de poucos anos se tornar a terceira economia do mundo. Tem também uma dinâmica demográfica notável, mas muitos problemas internos para resolver, como a pobreza e a corrupção antes de poder assumir uma política externa mais assertiva e se tornar mais do que uma potência emergente.

Com o Brexit, acabou a ilusão de uma União Europeia superpotência?
Essa é uma das grandes incógnitas no futuro próximo. Eu tendo a ser um euro-otimista e, nesse sentido, penso que o ideal europeu progrediu sempre em momentos de crise e de sobressalto. Por outras palavras, se bem que o Brexit represente um desafio para o futuro da União Europeia, ele pode surgir como uma oportunidade para que os países da Europa Continental prossigam o caminho que tem sido trilhado desde o final dos anos de 1950. O mesmo se diga da pandemia e do modo como a UE conseguiu alcançar o acordo para a recuperação da Europa. E, não menos importante, o protagonismo que a chanceler Merkel teve neste processo, assinalando também uma mudança de posição da Alemanha para uma posição menos relutante. Porém, este otimismo tem de ser moderado pela consciência de que nem tudo depende do voluntarismo dos líderes políticos europeus. Existem problemas estruturais na Europa e existem diferenças de fundo entre as várias Europas que dificultam todo o processo. E também será fundamental ter um parceiro disponível e previsível do outro lado do Atlântico depois das eleições de novembro de 2020.

Faz sentido repensar as Nações Unidas em termos de Conselho de Segurança para refletir 2020 e não a hierarquias das potências em 1945?
Faz todo o sentido, claro. O Conselho de Segurança quando foi criado, como muito bem diz na sua pergunta, refletia a hierarquização do sistema internacional no imediato pós-Guerra, com a existência dos cinco membros permanentes. Desde o final da Guerra Fria, face às alterações nos equilíbrios de poder na ordem internacional, países como a Alemanha, o Japão e, depois, o Brasil e a Índia (os chamados G4) têm vindo a insistir na necessidade de reforma. Mas não tem havido consenso que possibilite a reforma do Conselho de Segurança, seja porque os cinco membros permanentes não estão dispostos a abdicar do seu privilégio, seja porque os proponentes da reforma, ou das reformas, também não foram capazes de criar esse consenso: alargamento para quem e para quê, e com que poderes e com que limites.

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