O azar de ser hazara

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Num mosaico étnico tão complexo como o do Afeganistão, os hazaras têm duas características que os distinguem das restantes comunidades do país: seguem o islão xiita, ao contrário da esmagadora maioria dos afegãos, que são sunitas, e têm traços físicos que claramente os associam aos mongóis, possíveis antepassados, pois as tropas de Genghis Khan passaram por ali no século XIII.

Se os hazaras sempre foram discriminados pelos sucessivos regimes - monarquia, comunismo ou era mujaedine pouca diferença fazem -, a verdade é que a perseguição assumiu contornos extremos aquando do Emirado Islâmico do Afeganistão, o efémero Estado talibã que durou da conquista de Cabul, em 1996, pelos chamados "estudantes de religião", até à invasão americana de 2001, que os puniu por albergarem Osama bin Laden, o mentor do atentado terrorista da Al-Qaeda contra as Torres Gémeas de Nova Iorque. E, no entanto, hoje pouco mais resta ao povo hazara do que contar com a proteção dos talibãs contra a sanha assassina do Estado Islâmico, cuja célula no Afeganistão, tal como é regra do fundamentalismo sunita, vê os xiitas como hereges.

Desde que acordaram com os Estados Unidos a retirada das forças internacionais, no verão deste ano, destruindo logo de seguida o exército governamental do Estado democrático imposto pelo Ocidente nas últimas duas décadas, os talibãs têm feito um esforço mais verbal do que real para se mostrarem menos obscurantistas do que antes. Isso significa promessas de moderarem a opressão sobre as mulheres e também darem um tratamento menos discriminatório às minorias étnicas - a liderança talibã, e também os combatentes, continuam a ser sobretudo pastunes, como há duas décadas.

O ataque em outubro, por um bombista suicida, a uma mesquita xiita em Kandahar, berço do movimento talibã, teria posto, noutros tempos, os "estudantes de religião" na primeira linha dos suspeitos, mas o Estado Islâmico reivindicou o atentado, que matou meia centena de pessoas. A organização terrorista, que nasceu no Iraque e na Síria, odeia os xiitas (tal qual a Al-Qaeda e os próprios talibãs) e a novidade no Afeganistão é entre os seus ódios de estimação estar também o próprio regime fundamentalista, considerado demasiado moderado por ter negociado com os americanos e tentar obter algum reconhecimento internacional.

Hoje, e isso mostra como o Afeganistão evoluiu para uma situação absurda, é, pois, dos talibãs que os hazaras têm de esperar proteção contra o Estado Islâmico, de guardas pouco convictos como o colocado à porta da mesquita Fatemieh de Kandahar, alvo do mais mortífero, mas não único, atentado contra uma comunidade que representa um décimo dos 40 milhões de afegãos e cujos olhos rasgados a denuncia aos assassinos de xiitas.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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