Uma Europa mais arrojada
Quando se trata de política europeia a sério, é sempre bom começar por saber o que pensa Angela Merkel. Mesmo tendo presente que deverá sair de cena no próximo ano, continua a ser uma voz de referência. Nesta semana, a chanceler saudou, sem ambiguidades, a vitória de Joe Biden. E acrescentou que a parceria entre a União Europeia (UE) e os Estados Unidos deverá ser a aliança fundamental do século XXI. Estarei de acordo com esta afirmação se a colaboração assentar num equilíbrio de forças entre os dois lados. Como também estou em sintonia com Merkel quando diz, na sua mensagem ao presidente eleito, que para que a cooperação funcione eficazmente ter-se-á de pedir um esforço suplementar do lado da UE.
No dia seguinte, Ursula von der Leyen falou aos chefes de missão que representam a Europa no mundo. Mencionou, como não podia deixar de ser, o futuro das relações com os EUA. As suas palavras inspiraram-se no que Merkel havia dito. Sublinhou que cabe à UE tomar a iniciativa de um novo tipo de sinergias com a administração entrante, que não se trata de voltar ao passado, como se nada tivesse acontecido durante os últimos quatro anos. Ontem e amanhã pertencem a diferentes eras históricas. Após um mandato tão desafiante, radical e absurdo, como foi o de Donald Trump, uma boa parte da sociedade americana olha para a Europa e para o mundo com desconfiança. É preciso responder a esse estado de espírito, combater as tendências isolacionistas e voltar a acentuar a importância da cooperação internacional para a prosperidade de todos e para a resolução de problemas que não conhecem fronteiras.
A filosofia que está por detrás destas declarações europeias, às quais se juntaram as palavras de Emmanuel Macron, é encorajante.
A pandemia pôs o mundo de pantanas e veio mostrar que a solidariedade internacional e as complementaridades são hoje mais necessárias do que nunca. A Europa tem todas as condições para contribuir de modo positivo para a transformação estrutural que o novo futuro exige. Para isso, precisa de se tornar mais forte, mais ambiciosa, no bom sentido da palavra, e de olhar para as outras grandes potências num pé de igualdade. A velha atitude de subordinação aos Estados Unidos não serve os interesses europeus. Também não permite que a UE ganhe a autonomia necessária para desempenhar um papel estabilizador perante as rivalidades entre os outros grandes do planeta.
A responsabilidade europeia é a de aproveitar o espírito construtivo que a administração de Biden deverá trazer para as relações internacionais para projetar uma imagem mais nítida do que significa viver-se numa democracia de respeito mútuo e tolerante, justa e capaz de responder aos anseios de segurança de cada cidadão. A importância da segurança individual, no sentido multidimensional deste conceito, abrangendo a vida, o emprego, a saúde, a tranquilidade pessoal, é uma das grandes lições que a pandemia nos proporciona. Há que transpor essa lição para a prática política.
Para contribuir eficazmente para a parceria transatlântica e para qualquer ponte com outras regiões do globo, a UE tem de ser particularmente exigente consigo própria. Governações retrógradas, ultraliberais, xenófobas ou mesmo racistas, ou corruptas, não podem caber no espaço europeu. Como também não podemos aceitar administrações simplesmente ineficientes e burocráticas.
A força da Europa estará, acima de tudo, na qualidade e na justeza da sua governação e na coerência dos seus valores. Será completada pela existência de sistemas eficientes de segurança e defesa. Aqui, nas áreas da segurança europeia, a mensagem é que não somos contra ninguém, nem nos deixaremos arrastar pelas guerras dos outros, como infelizmente aconteceu no passado recente, mas também que não somos ingénuos. Esta mensagem é válida para todos, aliados e competidores. E também significa que sabemos que, no mundo de amanhã, melhor defesa e mais segurança não passam por mais canhões e mais soldados, mas sim por mais análise e inteligência, mais quadros e oficiais altamente preparados, mais forças especiais, melhores sistemas cibernéticos, um seguimento mais efetivo das plataformas sociais e uma informação que ajude os cidadãos a identificar a verdade e a eliminar o que é falso.
Se assim avançarmos, estaremos a responder de modo positivo à esperança que a eleição de Joe Biden criou e a abrir uma rota de progresso no sentido de um mundo mais equilibrado, seguro, inteligente e sustentável.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-representante especial da ONU.