"Sem geringonça de esquerda não seria possível agora uma geringonça de direita com o Chega"

Sempre crítico da geringonça, Sérgio Sousa Pinto, deputado do PS, diz que essa solução legitimou a solução agora adotada nos Açores sob a liderança do PSD. No seu entender, não haverá maneira de o país "sair da cepa torta" sem compromissos entre o PS e o PSD
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Há dias a Gradiva lançou no mercado "A República à Deriva", uma coletânea das crónicas que assinou no Expresso durante os últimos dois anos e meio. A escrita organizou-lhe o pensamento?
A escrita obrigou-me a disciplinar as minhas ideias e proporcionou-me um prazer. Era relativamente estranho, uma vez que a minha expressão natural preferida é o desenho.

Sente que encontrou uma voz, um estilo próprio? Ou já o tinha e foi só apurar?
Acho que não tinha uma voz de escrita, fui obrigado a desenvolvê-la por força das circunstâncias.

Sente-se insatisfeito no final de cada artigo?
Não, não. Sinto-me muito, muito satisfeito. Foi uma descoberta tardia que tem sido muito, muito compensadora

Há uma fixação histórica que tem que é o Churchill, que é um herói da II Guerra Mundial. Mas em relação a esse período de tempo, não tem, por exemplo, nenhuma fixação no Holocausto. Essa escolha revela alguma necessidade de esperança na humanidade ou nas pessoas? Escolher o lado bom e não o lado para mau para estudar em profundidade é um sinal de esperança ou de tentativa de ter esperança?
Nunca tinha pensado nisso nesses termos. O meu interesse pelo Churchill, em última análise tem a ver com o seguinte: vários autores consideram que a democracia é o regime da mediania, o regime do homem comum, que afasta e exclui os melhores; vários sustentam que, sendo assim, é o melhor regime possível, estamos de melhor privados dos melhores...

...E um regime que escolhe os melhores também é um regime muito arriscado...
É um regime muito arriscado. Acho essa a questão fundamental. Ora, o interesse de Churchill reside em ter sido um homem, a vários títulos, excecional, que emerge da democracia e é uma espécie de expressão do melhor que a democracia pode engendrar. Portanto, o sistema democrático não pode ser tão medíocre como se diz, uma vez que consentiu a figura do Churchill. O Churchill é o grande campeão da democracia do século XX. Uma espécie de Péricles moderno.

Quando escreve para o "Expresso" pensa em cronistas em que se revê? Quais os cronistas em que se revê e, pelo menos no estilo, o podem inspirar ou não? Seja do século XX ou do século XIX?
O grande cronista referência da minha geração é, evidentemente, o Vasco Pulido Valente, mas isso não significa que a ironia do Eça e o sarcasmo do Camilo não apareçam frequentemente nos textos, mas, enfim, estamos a falar de referências remotas. Não me passa pela cabeça aproximar vagamente desses modelos superiores.

O PS, em matéria de presidenciais, basicamente não tomou decisão nenhuma. O desafio é a participação cívica dos militantes, dos apoiantes. Já tem uma escolha feita ou não? Ou não vai fazer?
Neste momento não me sinto inclinado a ter um papel muito ativo nas próximas eleições presidenciais.

Por exclusão de partes, tenciona votar Marcelo ou é uma opção que está excluída?
Não tenho essa questão resolvida.

E Ana Gomes?
Não está resolvida para ninguém.

Fala-se muito atualmente numa normalização do Chega por via do acordo nos Açores. Acredita que que isso está a acontecer e é bom ou mau, péssimo ou horrível?
A questão essencial é a de perceber o Chega, de onde é que ele sai. Muitas circunstâncias convergem para explicar o aparecimento do Chega. Em primeiro lugar, a dureza do tempo que vivemos. Muito tem sido escrito sobre, por exemplo, as causas da Revolução Francesa, mas é provável que a causa eficiente, a causa direta que permitiu e favoreceu o êxito da Revolução Francesa tenha sido uma sucessão de maus anos agrícolas. E a verdade é que vivemos há demasiado tempo com maus anos agrícolas.

O que é que isso quer dizer?
Primeiro, começamos com a crise financeira de 2008 que atingiu o sistema bancário, depois tivemos a crise das dívidas soberanas e a troika, depois tivemos a marcha forçada em direção ao equilíbrio orçamental e, finalmente, temos uma pandemia. Isto, em termos modernos, é o equivalente a uma sucessão de maus anos agrícolas e, portanto, as condições políticas e sociais são de grande frustração e de grande penosidade e explicam essa preferência pelos extremos e explicam, pelo menos parcialmente, o aparecimento do Chega. Há outras razões mais comezinhas, mas todas convergem.

E porque é que fala na Revolução Francesa e não, por exemplo, nos ecos que isto tem em relação à ascensão dos fascismos entre a I Guerra e a II Guerra?
É uma excelente questão porque também podia falar disso.

Na Alemanha, desde 1918 que havia uma sucessão de "maus anos agrícolas"...
Com algumas poucas exceções a Europa entregou-se ao autoritarismo de livre vontade...

...Mesmo cá não houve grandes protestos
Não houve grandes protestos porque as pessoas sobretudo não queriam um regresso à 1ª República. O fim da 1ª República, que, na altura, como não existiu uma 2ª República, era o fim da República. É um absurdo completo chamar 2ª República ao Estado Novo, se alguém gritasse "Viva a República" no Estado Novo era preso . Aliás, o Brito Camacho, numa sessão que há-de ter sido a mais curta da História, com a polícia sentada na linha da frete, dizia: "Antigamente, tínhamos liberdade, igualdade e fraternidade e agora temos a infantaria, a cavalaria e a artilharia". E acabou a sessão. A República deixou o país profundamente traumatizado e o país, nos anos 30, aceitou com benevolência e, provavelmente, até algum alivio a solução autoritária, no que não se distinguiu da generalidade dos países europeus. Com a exceção da Checoslováquia e do milagre francês a França não ter caído numa ditadura em 1934 foi um milagre todo o continente descartou, sem estados de alma, os modelos democráticos liberais.

E os ecos disso para hoje? Isso conduziu a algures entre 60 a 80 milhões de mortos no mundo na II Guerra, seis milhões dos quais de uma etnia assassinada em modo industrial, os judeus. Sente ecos disso ou prefere não dar ao Chega a relevância de pensar que é comparável?
A minha interrogação é como é que os povos escolhem modelos de autoridade em detrimento de modelos democráticos, como é que o povo, titular da soberania, a entrega nas mãos de um chefe ou de uma elite dirigente. Essa é que é a questão que verdadeiramente me dá que pensar. A emergência dos fascismos e dos autoritarismos no período entre as duas guerras tem de ser compreendida não só no quadro dos maus anos agrícolas ou seja, no desemprego em massa, a inflação galopante, as desordens, o bombismo no caso português -, também há uma degenerescência própria dos regimes democráticos que favorecem esse desamor. O povo abandona a sua fé democrática, as suas convicções democráticas...

...E troca isso por segurança.
....E esse povo, que consente ser privado de soberania, de liberdade, de voz e de voto, não é povo que desejou o Holocausto. Isso é um juízo anacrónico. Hoje sabemos a que é que isso conduziu, conhecemos os horrores, conhecemos o mal absoluto. Temos essa vantagem retrospetiva e isso devia recomendar uma tentativa de compreensão dessa gente dos povos que vitoriaram aquilo.

Há quem diga que o que fez o Holocausto não foram só os nazis, foram os alemães no seu todo. Os primeiros grandes massacres de judeus na Ucrânia foram feitos por batalhões de polícia, não são feitos por SS...
Sobre essa questão tremenda há um livro fabuloso que é "As Benevolentes" e não acho que haja muito a acrescentar. Sobre o impacto que o extermínio genocida estava a ter no Exército e a necessidade de encontrar formas de extermínio confiadas ou a fanáticos SS ou a um sistema racional e industrial de liquidação humana. A mim, o que deixa mais perplexo e aterrorizado na minha natureza humana é o conceito operativo. A natureza humana existe.

E a natureza dos povos, existe?
Não sei se existe a natureza dos povos. O génio dos povos é uma coisa que vem do romantismo.

Chamaria o Chega de fascista?
Para acabar o raciocínio, o que me impressiona mais nesse período medonho, mas também enigmático, é como é que se concebe que os oficiais SS, muitos deles cientistas, pianistas, filósofos, como é que é possível que a Alemanha, o país da Europa em que se vendiam mais pianos por milhão de habitantes, como é que isto é possível? Quem não aceita a natureza humana, vai ter muito trabalho para tentar compreender este mistério absoluto.

Coloca no Chega etiquetas de xenófobo, racista, misógino, machista, homofóbico, autoritário fascista?
O Chega é uma coisa infrequentável. Explora sentimentos nocivos e inferiores. A tragédia é que no meio dessas brutalidades o Chega vai dizendo coisas que encontram um certo eco nas pessoas. Essa é que é a tragédia. Imagine-se que estamos numa aldeola perdida no meio do Alentejo onde os bons cidadãos não gostam de ciganos mas gostam de touradas. Aquilo que o regime lhes diz é: vocês têm é que gostar de ciganos, não podem é gostar de touradas. As pessoas não gostam do Chega por o Chega ser fascista. As pessoas não são fascistas. A adesão ao Chega não é uma adesão ao fascismo. A força do Chega não tem nada a ver com uma adesão ao ideário fascista. A força do Chega tem a ver com uma adesão a uma frustração radical em relação a um regime aquilo a que os fascistas chamavam o regime dos partidos e que o general De Gaulle também chamava o regime dos partidos. E também adesão a uma vontade de castigar a classe política, os partidos, a comunicação social tudo aquilo em que o povo, os segmentos da população, cada vez menos se reconhece. Há qualquer coisa a acontecer junto ao chão que tem de ser compreendida.

Fica triste quando vê o Chega entrar no arco do poder, como entrou agora nos Açores? E quando isso acontece pela mão do PSD, um partido próximo do PS?
É sintomático do nosso tempo que estejamos aqui há não sei quanto tempo a falar de um partido que tem um deputado...

Nos Açores teve dois. Cinco por cento. E dois deputados em 57 não um em 230, como nas legislativas nacionais de 2019.
É preciso perceber o que está a acontecer e porque é que está a acontecer. Há várias razões e até há razões bastante superficiais ajudam a compreender o fenómeno do Chega. Que, insisto, neste momento é um grupúsculo com um deputado. Uma dessas razões é o estilo da oposição. Esta opção do PSD por uma certa oposição inerte, confiante de que o poder mais cedo ou mais tarde de que o poder lhe cairá no regaço e que até é uma estratégia que não está forçosamente errada, pode correr bem a Rui Rio. É evidente que uma oposição de estilo inerte cria condições para que algo aconteça à direita. Poderia ter acontecido um crescimento exponencial do CDS mas em vez disso aconteceu o surgimento do Chega.

O facto de na legislatura anterior ter havido uma objetiva coligação à esquerda deu gás a esse fenómeno do Chega? Uma coisa deu origem à outra?
Se não tivesse existido uma geringonça de esquerda não seria possível agora uma geringonça de direita com o Chega.

Portanto, a sua posição, que era contra a geringonça de esquerda desde o início, sente-se agora reforçada. Tem um pensamento do tipo "eu avisei! eu bem disse!"?
Seria demasiada pesporrência dizer isso. Inauguramos uma nova era em que as pessoas percebem que os partidos saem dos grandes blocos da esquerda ou da direita. E portanto os grandes partidos estão reféns dos pequenos partidos que estão alojados no seu extremo político. É um novo paradigma que eu acho mau. A democracia e o regime não ganharam nada com isso mas é aquilo que temos. E isto vai ter um efeito negativo no chamado voto útil. Ou seja: já não há voto útil. Porque razão uma pessoa aborrecida com o atual governo irá votar no PS se pode votar no PAN? É um voto de protesto disponível que não inviabiliza uma solução estável. É um voto que influencia, condiciona, pune, castiga mas não prejudica uma solução de Governo porque a esquerda está condenada assim como a direita simetricamente condenada a entender-se também está. Este foi o novo paradigma. Não é bom porque o PS era o grande partido charneira do regime e tinha canais de diálogo e compromissos com as diferentes forças políticas e acantonou-se como partido liderante de uma espécie de família política quando é notório que não existe nenhuma família política à esquerda. E há uma explicação histórica para isto: o socialismo que combateu o PCP nos anos de brasa ou já morreu ou está a morrer. E boa parte das figuras que hoje atingem um estatuto de preponderância no PS são figuras que nesses anos advogavam o frentismo de esquerda e que achavam que o PS se devia entender com o PCP e que a solução para o país estava numa convergência de esquerda.

Está a falar de quem?
Não quero nomear mas o António Costa, por exemplo, não tem nada a ver com isto que eu estou a dizer. Mas houve uma transição geracional e estamos a falar de pessoas que ou andaram no esquerdismo ou acreditaram que era preciso um socialismo à portuguesa ou que acreditaram na necessidade de entendimentos entre todas as forças de esquerda. Havia uma cultura frentista que se sente muito mais confortável agora com esta situação.

Acha que este Governo tem condições para chegar ao fim da legislatura? Isso preocupa-o ou não o princípio geral da estabilidade.
Espero que a legislatura se cumpra. É a regra normal nas democracias estáveis.

Voltando atrás: vê nas divisões internas do PS face às presidenciais uma espécie de antecâmara das divisões no PS quando o partido discutir a sucessão de António Costa?
Talvez sim, talvez haja uma espécie de dança de posições...

Aceita a posição do PS de não apoiar ninguém?
Nas atuais condições percebo a decisão do líder do PS. Uma pessoa tem que ter empatia. Como diriam os ingleses: pôr-se nos sapatos dos outros. Na circunstância que o líder do PS vive, a decisão encontrada é uma decisão sensata.

No fim deste ciclo de governação de esquerda que um dia irá acabar o PS arrisca-se depois a uma enorme travessia do deserto?
O normal em democracia é a alternância. O PS não é o Partido Revolucionário Institucional do México. O que é natural é que o PS mais cedo ou mais tarde saia do poder e dê lugar a uma alternativa. O que temos de pensar é noutra coisa. Se as soluções que vão emergir no quadro deste novo figurino de blocos de esquerda e de blocos de direita, quadro no qual não há lugar ao diálogo entre o PS e o PSD, se esse cenário é compatível com a necessidade de resolvermos os grandes problemas nacionais. Isso é que importa o que interessa é o país.

Vamos voltar à II Guerra e a Churchill. Ele liderou o seu país numa grande coligação com os Trabalhistas. Face à esta situação atual, com a pandemia a fazer mais de 80 mortos por dia, e depois a crise económica e social em cima, era uma solução preferível que essa Grande Coligação tivesse uma experiência cá, agora, face ao dramatismo da situação?
Não. Não defendo soluções de Bloco Central. O que me parece mas posso estar enganados é que os problemas nacionais só podem ser enfrentados e resolvidos se existir um diálogo construtivo e se existir a capacidade de firmar compromissos nacionais entre o PS e o PSD. Isto não significa que têm de ir para o governo coligado.

Portanto, no seu entender, o problema é que esse diálogo ao centro extinguiu-se, mesmo com o PSD a fazer, como disse, uma oposição "inerte"?
Quem olha para a história de Portugal, sobretudo desde o advento do liberalismo, percebe que temos um problema para resolver: o problema de sair do nosso atraso relativo em termos económicos. Essa é a questão fundamental. Se resolvermos o nosso atraso relativo em termos económicos vão surgir soluções para outros problemas não estritamente económicos: qualidade das instituições, qualidade do ensino, saúde, ordenamento do território, uma ideia de progresso verdadeira. Isso é o que conta, não é o que se fala todos os dias neste eterno folhetim lisboeta em que se converteu a política nacional. Vamos enfrentar estes problemas? Qual é a mãe de todas as causas? É o crescimento económico. É o país sair da cepa torta. O país não sai da cepa torta, a cepa torta é destruidora. Já destruiu vários regimes e pode destruir este. O país tem de sair da cepa torta e não vejo como isso é possível sem compromissos do PS com o PSD.

Vamos falar de duas questões internacionais, dado que também é presidente da Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros. Primeiro, Moçambique. Está a ferro e fogo, com ataques de extremistas islâmicos no norte. Portugal o que pode fazer? E fazia sentido pensar numa componente militar da CPLP?
O Estado português não pode fazer nada contra a vontade do governo de Maputo. O papel de Portugal é ajudar o governo moçambicano, diretamente e através de instituições internacionais em que participa. Sozinho Portugal não pode resolver nada.

Segundo, a Venezuela. Maduro tremeu mas aguentou-se. E entretanto continuam por lá milhares de portugueses. A diplomacia portuguesa tem de falar com o diabo?

Não temos na nossa mão a solução do problema venezuelano. Mas a Venezuela é um Estado falhado. A política portuguesa, ao contrário do que imaginam as Joanas d'Arc do costume, que não percebem que o sistema internacional é anárquico e não está subordinado ao Direito, tem de ter em conta os interesses da nossa comunidade emigrante, tem de ser uma política com os pés bem assentes na realidade. A nossa prioridade é garantir a segurança da nossa comunidade. Esse deve ser e tem sido o eixo fundamental da política portuguesa. Se não fossemos stake holders, se não tivéssemos interesses atendíveis na região, podíamos proclamar os nossos princípios tão belos que encandeariam quem passa.

Sente-se uma eterna esperança de adiada do PS?
Já há vários anos que respondo a essa pergunta, que me persegue. Mas a recorrência da pergunta não me serviu para nada, em termos de me facilitar a resposta. Nunca manifestei a ninguém que a liderança do partido constituísse uma ambição.

Mas sente-se subaproveitado?
Não vou ser juiz em causa própria. Tenho responsabilidades compatíveis com a avaliação que a direção do partido faz.

Num futuro confronto Pedro Nuno Santos/Fernando Medina de que lado se colocará?
Não me quero pronunciar sobre o futuro.

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