O que os noivos não sabem

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Por volta de 1351 a.C., o faraó do Egipto Amenófis IV escreveu ao rei da Babilónia pedindo-lhe se podia, por obséquio, enviar-lhe uma das suas filhas como presente. O rei respondeu indignadamente que era um grande descaramento pedir-lhe uma filha, quando a sua irmã fora enviada alguns anos antes para o Egipto nessas mesmas condições. "E até hoje não sabemos nada dela", concluía a carta. É possível que Amenófis não se lembrasse do facto quando enviou o pedido.

Certo é que não se deu ao trabalho de confirmar que essa primeira oferta nupcial babilónica se encontrava bem de saúde, ainda no palácio, e ainda a gozar a companhia de uma percentagem substancial das três mil damas de honor que tinham feito a viagem com ela. Na verdade era uma de quatro esposas ainda em vigor e dentro do prazo na corte de Amenófis. Outra delas era sua irmã, e portanto duplamente princesa; foi ela a dar a luz o seu herdeiro, Tutankhamon, simultaneamente filho e sobrinho, e que no futuro viria ele próprio a casar-se com outra princesa: mais uma irmã.

A frase "quero sentir-me uma princesa" surge com transtornante frequência no reality show matrimonial da SIC O Noivo É Que Sabe, mas o desejo nunca assume este tipo de conotações históricas; os concorrentes de reality shows podem dar voz a muitas ambições, mas "quero ser a minha própria tia-avó" não costuma ser uma delas. A conotação operativa, aliás, é com outra daquelas a que Hobsbawm chamava "tradições inventadas": a cerimónia em que a noiva veste de branco, e que foi criada quase por acidente pela rainha Vitória, que escolheu essa cor em vez do habitual vermelho por forma a simbolizar a capacidade dos monarcas para fazerem as cores simbolizar o que eles bem entenderem.

O Noivo É Que Sabe reserva para cada casal de concorrentes um orçamento de 12,5 mil euros e um prazo de três semanas, com uma única estipulação: é o noivo que tem de organizar todos os pormenores da cerimónia. Isto revela-se invariavelmente um desastre porque, como a sociologia, a antropologia económica e a neurobiologia há muito comprovaram, os homens não sabem o que é um "casamento", nem um "orçamento", nem um "prazo".

O programa da SIC não é original nesta descoberta; a premissa de que parte é a mais consistentemente utilitária na história da televisão, numa trajectória que inclui os concursos dos anos de 1950, as sitcoms dos anos 80 e os anúncios a detergentes do século XXI: a de que os homens e as mulheres são comicamente diferentes. Se uma mulher tiver como tarefa organizar um casamento, o que ela faz é organizar um casamento; se um homem tiver como tarefa organizar um casamento, o que ele faz é incendiar um armazém, embebedar um cisne, provocar um surto de intoxicação alimentar e roubar uma frota de autocarros.

A fórmula foi, como todas, importada, e na sua iteração original foi usada predominantemente para orquestrar pequenas fábulas morais, com enredos mais predeterminados do que os de qualquer telenovela: noivo trapalhão, mas bem-intencionado; noiva receosa, mas apaixonada; dissabores logísticos e acidentes de percurso; aprendizagem; sucesso; amor triunfante. Pelo meio, várias cenas de mulheres a chorar em frente a toucadores, e de homens a franzir o sobrolho em frente a catálogos de moda.

O episódio mais recente mostrou que a SIC não podia estar menos interessada nesses melodramas artificiais. O casal da semana, Carla e Rui, não se consegue, muito obviamente, ver à frente. "Ele é um bocado bimbo" foi talvez a frase mais carinhosa proferida pela noiva (apesar da forte concorrência de "ele não sabe escrever, nem sabe falar"). Quando Carla vai experimentar o vestido (escolhido por ele), as dúvidas instalam-se ainda antes de entrar na loja ("que coisa tão pirosa... parece uma loja do chinês"). À mesma hora, as câmaras mostram o noivo numa sessão de planeamento com a mãe, que insiste em participar na organização da despedida de solteiro. "Deixa a mãe ajudar", implora. "Podias trazer bifanas. E vodca", sugere Rui. A mãe acha pouco. "E uma sobremesasinha?" Rui pondera a sugestão em silêncio, sem pressas. Ainda falta imenso tempo para a cerimónia (mais de 72 horas), e o seu lema de vida é claramente "amanhã trato disso".

O consenso entre a família da noiva é que toda a situação é um desastre incipiente, suspeitas que não são atenuadas quando se descobre que o noivo se esqueceu de convidar a sogra. O resto do episódio mostra que também se esqueceu de comprar alianças. E de convidar um padre. Nos tempos de Amenófis IV, estes lapsos não teriam grande importância, mas aqui não auguram nada de bom. As palavras iniciais de Carla parecem cada vez mais proféticas: "Eu acho que ele se vai esquecer das coisas essenciais e perder tempo a comprar coisas supérfluas... como o lagarto de plástico que me ofereceu ontem... porquê um lagarto?" A pergunta fica a assombrar o espectador muito depois dos créditos finais.

A julgar pelos três primeiros episódios, The Undoing (HBO) podia perfeitamente ter como subtítulo "O que a noiva não sabe". O enredo acompanha um casal da plutocracia nova-iorquina - oncologista de sucesso e terapeuta de sucesso. Ambos moram num apartamento de sucesso, e têm um filho, que toca violino também com tremendo sucesso. O marido é interpretado por Hugh Grant, que traz ao papel a sua fiel expressão de "sinto-me bastante desconfortável e peço imensa desculpa por tudo". A mulher é constituída pelo tipo de vestuário que a rainha Vitória acharia excessivo para o seu dia de casamento, e também pelo rosto de Nicole Kidman, agora permanentemente imobilizado pela medicina no esgar de quem abriu um presente do marido e encontrou um lagarto de plástico.

O casal ocupa os dias entre as suas exigentes profissões, e não menos exigentes sessões de filantropia competitiva, nas quais se deparam repetidamente com as duas imagens de prestígio da HBO: flashbacks e seios nus.. Há um crime no primeiro episódio, um escalar de suspeitas domésticas, e a gradual compreensão de que, ao contrário do que acontece com guiões televisivos, nunca conseguimos verdadeiramente conhecer outra pessoa.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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