"A gente tinha levado um gerador pequenino de gasolina e projetava filmes. Eu tinha feito uma seleção de Chaplin e Buster Keaton. A molecada pirou. Eles ficaram malucos. [Os filmes] Eram projetados num lençol, à noite." Foi há cerca de dez anos que a realizadora Renée Nader Messora chegou pela primeira vez a uma aldeia krahô, povo indígena do Brasil..Foi nesse momento, recorda, que pensou que haveria de voltar e trabalhar no campo audiovisual com aquelas pessoas. Estava, contudo, longe de imaginar que haveria de ganhar ali um novo nome, que, depois de várias visitas, voltaria mais tarde já não sozinha mas com João Salaviza, com quem ali dirigiu e filmou Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, e que ambos voltariam ainda mais tarde com a sua filha, Mira, de pouco mais de um ano, que, enquanto conversamos, passeia-se e brinca ali à volta. Os dois ponderam viver um período das suas vidas na aldeia onde tudo isto aconteceu, a aldeia krahô de Pedra Branca, em Tocantins, estado do interior do Brasil. Mira poderia estudar "um ou dois anos na escola indígena. Na verdade, é um privilégio ser criança numa aldeia indígena", diz Renée..Entretanto, Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos chega hoje às salas portuguesas. Foi apresentado no Festival de Cannes (que em 2009 atribuiu a Palma de Ouro a Salaviza pela curta Arena), onde venceu o prémio do júri na secção Un Certain Regard e recebeu uma standing ovation (aplauso de pé) de 15 minutos por parte do público. Mais importante ainda para os dois é o facto de terem apresentado o filme com Ihjãc e Kotô, ambos krahô, pessoas e personagens centrais do filme. Ihjãc, de 15 anos, falou na sua língua indígena perante aquela plateia..Não havia como não tornar aquilo político. Bem longe da aldeia, com o Atlântico pelo meio, em pleno Festival de Cannes, lia-se nas T-shirts da equipa "Demarcação já", numa referência ao extermínio dos povos indígenas e à expulsão dos seus territórios em curso no Brasil. Também não há como não falar da vida comum quando se fala deste filme. "Vamos ter uma relação com os krahô para o resto da vida. Haja ou não haja filmes", diz, perentório, Salaviza..Renée Nader e João Salaviza foram colegas na escola de cinema em Buenos Aires. Quando ele a convidou para trabalhar na sua primeira longa-metragem, Montanha (2015), já Renée, natural de São Paulo, estava mergulhada no mundo krahô e sempre a pensar em regressar. Voltaram juntos. "Eu estava a sentir uma espécie de esgotamento de uma forma de fazer cinema que me estava a começar a parecer muito limitadora. De repente tenho 30 anos e penso: 'Acho que não é isto que eu quero fazer o resto da vida, cinema sim, mas não desta maneira. Ainda não encontrei uma harmonia entre o processo de produção de um filme e os processos vitais que me interessam viver, e se o cinema vai ser sempre isto, não sei se me interessa seguir por este caminho eternamente'", recorda Salaviza..Não foram para filmar, foram para estar, para ficar. As câmaras vieram depois. "O cinema tem esta possibilidade incrível: quando é feito desta forma, quase como um ofício. Permite chegar a um lugar e dizer: 'Eu sei fazer alguma coisa, sei fazer filmes e há coisas que me interessa filmar, mas também posso ser útil para coisas que vocês queiram fazer'", continua o realizador. Um exemplo? A segunda ida dos dois coincidiu com a chegada da luz elétrica à aldeia, depois de uma duradoura resistência..Na primeira semana houve uma alteração radical nos ritmos da aldeia. "As pessoas ficavam até tarde a ver o jornal da Globo e acordavam mais tarde." Depois os ritmos voltaram ao normal. Mas um dos miúdos krahô pôs uma questão: Porque é que não apareciam índios no telejornal nacional? Durante um mês e meio os dois realizadores fizeram com a população um jornal krahô. "Replicando o modelo hegemónico do jornal da Globo, mas com notícias da aldeia que eram filmadas durante a semana por eles. Eles saíam com as câmaras para filmar e nós ajudávamos com a montagem. No final da semana exibia-se esse jornal krahô num lençol, no pátio, com as noticias da aldeia.".Entre as reportagens desse telejornal estavam, por exemplo, aquela feita no jogo de um dos torneios de futebol entre aldeias ou outra sobre a questão do sistema de abastecimento de água que não funcionava..João Salaviza ganhou ali um novo nome, e passou a pertencer à mesma família krahô do que Renée Nader, que já antes fora batizada. "É das primeiras coisas que acontecem quando você chega numa aldeia krahô. Enquanto você não tem nome eles não sabem muito bem como lidar, porque tudo ali acontece através do nome. O nome vai determinar se você é do verão ou do inverno, com quem você pode ou não falar, as relações de amizade formal. Acho que o krahô tem um sexto sentido para perceber quem está chegando. Já vi muita gente que não foi batizada", explica a realizadora..Entre a ficção e o documentário.Foi longo o processo até Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, filmado em película de 16 mm e na fronteira entre os mecanismos da ficção e os do documentário etnográfico. Antes do filme, os dois realizadores fizeram duas curtas-metragens com Ihjãc, ator e personagem principal do filme. Ainda antes disso, e regressando ao aparecimento da televisão na aldeia, foi preciso introduzir ali os mecanismos da ficção. "É claro que eles tinham o olhar da verdade. Lembro que no começo [quando viam as telenovelas da Globo], eles falavam: 'Mas ela estava sangrando, eu vi que ela morreu. Como é que ela não morreu?' Era uma questão", lembra Renée Nader..Quando a longa-metragem apareceu enquanto tal, havia, diz Salaviza, "uma espécie de esqueleto narrativo frágil, mas que era uma espécie de mapa para não nos perdermos completamente". Esse esqueleto era "a história de um outro miúdo, que foi vítima de um feitiço do pai da ex-mulher, um pajé [xamã] meio ruim, meio demoníaco, com muitas mortes nas costas. Ele ficou muito assustado, tinha 18 anos na altura, uma mulher e um filho pequeno. Fugiu para a cidade, ficou um ano a morar em Itacajá, ia ao hospital e os médicos, e obviamente havia este desencontro enorme entre dois tipos de medicina e de pensamento sobre o corpo, então os médicos diziam que ele era hipocondríaco, ele dizia que se sentia muito fraco e que se sentia mal por dentro, mas não conseguia localizar onde. Acabou por perceber que na cidade não ia conseguir resolver nada e que tinha mesmo de encarar o regresso à aldeia e chamou outro pajé para o proteger e fazer outro feitiço"..No filme seguimos Ihjãc, interpelado pelo espírito do pai. Há que preparar a sua festa de fim de luto, um dos rituais mais impressionantes dos krahô e central neste filme. O rapaz, já pai de um bebé e companheiro de Kotô, foge ao chamamento. Não quer tornar-se pajé (xamã). Vai para a cidade, que não compreende o que ele tem. Dão-lhe paracetamol e sugerem que seja hipocondríaco. Ihjãc regressa. Para lá daquilo a que se pode chamar o coração da história, a câmara de Nader e Salaviza olha para os krahô: para as raparigas em conversas de raparigas enquanto se banham no rio, para as crianças que brincam com fogo, para Kotô e o bebé, para a aldeia e, claro, os rituais, como a festa de fim de luto..Perguntamos-lhes se a certa altura, e tratando-se de xamãs e mẽcarõs (espíritos), eles não recearam que estivessem a pôr os atores envolvidos numa posição perigosa para eles, de fronteira. Recearam, sim, e também Vítor Aratanha, responsável pelo som, tradutor para eles da língua, amigo há muito, e pai de crianças krahô, os prevenira. Marcaram então uma reunião com um importante pajé da comunidade. Ele riu-se e disse: "Ah não, eles sabem que vocês estão brincando. Até porque eles se referiam ao filme como 'brincadeira'. Perguntavam: hoje vai ter brincadeira?'", recorda Salaviza..Falamos mais uma vez de Vítor Aratanha a propósito das crianças indígenas, quando Renée conta que o enteado de Vítor, krahô, foi com eles pela primeira vez a São Paulo, para ver Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos numa projeção. Tinha 7 anos e nunca tinha estado numa grande cidade assim. "A primeira coisa que ele percebeu de toda aquela bagunça caótica e falou: 'Mas porque é que tem tanta gente na rua morando no chão?' E é muito doido, porque tudo podia chamar a atenção - a escada rolante, a altura do prédio, a quantidade de carros." Na aldeia, entre os krahô, era impensável. Tudo é partilhado, tudo circula. "As crianças já crescem com isso muito incorporado", acrescenta Renée Nader..Depois do Festival de Cannes, os dois regressaram à aldeia de Pedra Branca para mostrar o filme acabado. Ihjãc pediu-lhe para os pais serem os primeiros a ver e só depois toda a comunidade. Salaviza conta como foi: "Quando acaba o filme o pai começa a chorar e disse: 'Eu sei que isto é uma história, que é brincadeira, e que eu não morri, mas eu fico muito triste de ver o Ihjãc sozinho na cidade sem mim. Mas o filme é muito bonito, podem mostrar à vontade. Este filme é muito importante para os mais novos também, para eles verem esta questão da espiritualidade.'"."Agora [o filme] já está em pen-drive na aldeia, pirateado por todo o lado", conta a companheira a rir-se. Quando chegou a altura de o mostrar à aldeia, a reação foi inesperada. Temeram que fosse pesada. Não. "Eles riram-se do princípio ao fim. É uma coisa que ainda hoje estamos a tentar perceber: até que ponto os modos de receção na intimidade ou em comunidade os afeta ou não." Renée Nader completa João Salaviza e recorda que uma psicanalista francesa sugeriu, no Lincoln Center em Nova Iorque, onde também já mostraram o filme, que "eles se riram porque não têm espelho, então nunca se veem, não veem as suas imagens".."Sempre tive medo de vocês, brancos".Quando falou perante a plateia de Cannes, Ihjãc disse, em língua krahô: "Eu não queria vir, eu não queria estar aqui, eu sempre tive medo de vocês, brancos, mas percebi que isto era uma festa do cinema e que há aqui pessoas que não são contra nós, que querem saber mais sobre os krahô, então estou contente de estar aqui." Foi em maio.."Bolsonaro ainda não tinha chegado ao poder, mas já se estava a perceber que havia aqui uma movimentação estranha a acontecer, então acho que este miúdo de 15 anos pegar no microfone, não pedir licença para existir e para falar, é de uma importância politica enorme", afirma Salaviza, lembrando que este é o primeiro presidente do Brasil "que diz abertamente ser contra os indígenas. O plano do governo brasileiro para dar a estocada final nos povos indígenas é retirar-lhes as últimas terras que estão demarcadas, impedir outras demarcações e transformar as terras demarcadas em terras produtivas, utilizando o léxico do governo".."Tem indígenas sendo assassinados diariamente", refere, ao seu lado, Renée Nader. Além do filme, que hoje chega às salas portuguesas, os dois assinam ainda a exposição Carõ - Multidões da Floresta, patente ate 9 de junho no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, em torno do universo krahô, sobretudo no que diz respeito à sua dimensão mitológica e ritualística.