A escolha de Joacine: renunciar ou passar a independente
Joacine Katar-Moreira vai ser o alfa e o ómega do IX Congresso do Livre, que se realizará no próximo fim de semana no Centro Cívico Edmundo Pedro, em Lisboa (bairro de Alvalade).
Subscrita por militantes do norte - nenhum dos quais membro da atual direção ou candidato a ela -, uma moção propõe à deputada do partido um de dois caminhos: ou renuncia ao mandato ou o partido retira-lhe a confiança. Dito de outra maneira: ou sai ou passa a independente (e assim o Livre deixa de ter representação parlamentar).
O texto - intitulado "Recuperar o Livre, resgatar a política" - é duríssimo para com a deputada. E, segundo fontes do partido, o mais provável é que seja mesmo aprovado - eventualmente com algum retoque na linguagem aqui ou ali. O facto de a deputada não ter sido reconduzida na direção executiva do Livre (Grupo de Contacto) é sinal de que a rutura final está a dias de se consumar.
Joacine será, então, efetivamente confrontada com a escolha: ou sai ou fica (como independente). Uma coisa é certa (para a deputada do Livre ou outro qualquer): o mandato pertence-lhe; nenhuma direção partidária lho poderá retirar.
A moção está porém longe de ser a única em que o "caso" é abordado. Estarão 19 em discussão (uma global, da direção, e 18 setoriais). E várias refletem sobre o problema.
Há uma, inclusivamente, que defende a deputada, significando isto que Joacine não está totalmente isolada dentro do Livre. Intitulada "Um compromisso do Livre com as lutas emancipatórias", e apresentada pelo militante João Faria-Ferreira, começa por dizer que "o escrutínio, por vezes injusto e tendencioso, da parte da comunicação social, e a divulgação de notícias falsas nas redes sociais, não foram alvo de um repúdio e condenação sérios da parte do partido".
Ou seja: "Um partido que se apresentou a eleições com a primeira mulher negra cabeça-de-lista, que escolheu em primárias, e que diz levantar a bandeira antirracista, não soube criar um ambiente interno seguro para uma das suas camaradas." Dito por outras palavras: "Não se pode deixar, seja qual for a situação, uma pessoa, camarada ou não, sentindo-se profundamente só."
João Faria-Ferreira sugere mesmo que a direção do Livre, no conflito com a deputada, pode ter deixado condicionar-se por problemas de racismo.
"Urge, talvez, fazer algo: perceber melhor o que é o racismo, através das palavras de pensadores negros; e que os membros e apoiantes de um partido que foi a eleições com a bandeira do feminismo e antirracismo mudem de postura e atitude", escreveu.
Acrescentando: "O racismo institucional e estrutural presente na sociedade em que todos nós crescemos condicionou-nos a que hoje, involuntariamente, também os mais bem-intencionados cometam atos de racismo."
Portanto, "para combater a instrumentalização das lutas, concretizando as promessas que foram feitas durante a campanha", é preciso "incentivar o gabinete parlamentar e a deputada Joacine Katar-Moreira, através de apoio logístico e político, a apresentar na Assembleia da República, com a maior brevidade possível, as propostas concretas" e "mais viáveis" do Livre sobre igualdade, justiça social e liberdade que constam no programa eleitoral que o partido levou a votos nas últimas legislativas.
Por outro lado, "para ajudar no processo da cura de feridas e para acabar com a crise interna", haverá que "assegurar a autonomia da deputada", estabelecendo "ao mesmo tempo canais de contacto saudável entre o grupo parlamentar, o Grupo de Contacto, a Assembleia [órgão deliberativo do Livre] e todos os membros e apoiantes do Livre, onde podem ser colocadas dúvidas e críticas construtivas".
E finalmente, "para a boa reputação do Livre", é preciso "defender publicamente a deputada e o seu gabinete parlamentar de ataques infundados e de notícias falsas, mantendo uma frente unida contra a extrema-direita".
Já na moção global - que sustenta a lista única candidata à direção executiva - reconhece-se apenas que "a eleição para Assembleia da República levantou, no entanto, várias questões de funcionamento dos órgãos do partido e de métodos, que é necessário sistematizar e analisar construtivamente, de forma a tornar fluido e articulado o trabalho dentro do Livre, com as suas representações e na comunicação para o exterior".
Portanto, serão promovidos, "em conjunto com a Assembleia, grupos de análise que possam apontar as melhorias a adotar, já a tempo das próximas eleições nos Açores, em outubro deste ano".
No texto, Joacine é implicitamente criticada, quando se desaconselham práticas contrárias aos princípios da "colegialidade" do partido.
"O Livre constitui-se como um partido colegial nos processos de tomada de decisão em todos os órgãos que constituem o partido" e "esta forma de funcionamento, que reflete uma forma de praticar a política, aplica-se também à tomada de posições políticas e estratégicas. A colegialidade permite também garantir uma maior representatividade e uma maior diversidade de experiências, enriquecendo a mensagem política e fugindo da sua pessoalização".
Dito de outra forma: "Esta prática de colegialidade, participação e transparência procura uma abertura da política a toda a sociedade, seja através da votação de emendas e programas, seja a eleição dos candidatos do partido através de eleições primárias abertas. Esta abertura privilegia a transparência, o debate político e a defesa das opiniões, sempre baseada no princípio da confiança mútua, entre camaradas, entre órgãos e entre representantes e representados."
Numa outra moção - "Maximizar a participação e a inteligência coletiva nos processos de tomada de decisão" - sugere-se implicitamente com os candidatos que escolhe nos processos de eleições primárias (processos abertos a não militantes).
"Com a eleição de uma representação parlamentar, pode considerar-se que o Livre iniciou um novo ciclo de crescimento e afirmação política. No IX Congresso deve haver tempo de balanço e reflexão sobre como encarar o maior escrutínio a que estamos sujeitos", é sugerido.
Argumentando-se que "o processo de primárias precisa de ser aperfeiçoado, nomeadamente assegurando que o partido se reveja nos candidatos selecionados e que estes se revejam nos programas que defendem; uma devida apresentação e debate aprofundado entre os/as candidatos; e a criação de uma cultura de confiança e de incorporação do Código de Ética do Livre".
Já no texto intitulado "Pensar o partido", reconhece-se algum "experimentalismo" nas soluções internas organizativas do partido, defendendo-se que há que "avaliar os resultados": "Não há dúvida que o Livre difere em termos de estrutura organizativa, quando comparado aos restantes partidos portugueses, e, mesmo no cenário europeu, são poucos os partidos que apresentam este tipo de qualidades. No entanto, dada a recente idade do Livre, é impossível negarmos que existe algum experimentalismo com a introdução deste tipo de soluções, e que, mesmo sendo positivas, o bom senso diz-nos que, como em qualquer experiência, é necessário avaliar os seus resultados."